IANNI, A POESIA NA SOCIOLOGIA

por José de Souza Martins*Ianni

 

Octavio Ianni falece no mesmo ano em que completaria meio século de vida intelectual intensamente dedicada à Sociologia: formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em 1954. O meio século do que foi em sua vida, e na vida de todos nós que com ele convivemos, o meio século dos extremos: da euforia desenvolvimentista da era JK aos tempos tenebrosos da ditadura militar, de que ele foi uma das vítimas, aos tempos, enfim, de uma era de esperança e, ao que parece, por uma sua entrevista recente, de desilusões políticas.

Nesses extremos, um primeiro trabalho de Octavio sobre o samba de terreiro em Itu, sua amada terra caipira, foi o capítulo inicial de uma rica preocupação com o negro, a cultura popular, o mundo caipira, o homem simples, como ele o denominou num belo e definitivo ensaio. E também com a alegria que atravessa desde sempre nossos dilemas e nossas contradições para nos dizer que a vida é um pontilhado de opostos, único jeito de construir o novo e o mundo novo. Esse estudo é o prenúncio da obra de um homem permanentemente devotado à compreensão sociológica das diferenças sociais, das injustiças a elas associadas, das vacilações na busca de meios de superá-las. Mas nunca a obra do ingênuo do palavrório radical, tão em moda e tão inócuo, da crítica superficial e infundada.

Ao contrário, Ianni foi um pensador sereno e sensato. Ele foi um artesão do pensamento crítico no Brasil, autor de uma obra marcada de iluminuras que anunciam a estética de cada texto que escrevia para dizer-nos que o pensamento crítico não é uma farra do espírito e do denuncismo barato e incompetente. Para ele, o pensamento crítico é o pensamento responsável e fundamentado, acima das facções de toda ordem, expressão da neutralidade ética, mas não da indiferença social e política, produto da descoberta paciente, da indagação organizada, da investigação científica cuidadosa e não raro demorada. Lembro dele, meu professor no curso de graduação, explicando-me em sua apertada sala lá da rua Maria Antônia, que na sociologia a construção de uma interpretação dos dados de uma pesquisa é como a elaboração de uma sinfonia: a partir da descoberta do tema o sociólogo vai descobrindo desdobramentos, vai compondo sua obra, sua interpretação, as conexões de sentido, a explicação científica, o todo que se esconde atrás do factual, a universalidade contida no singular, no discreto e até no minúsculo.

036ianniIanni nunca se propôs a ser um pai da pátria, de dedo em riste discursando verdades incontestáveis, como se fosse dele o mandato de apontar rumos e denunciar descaminhos. Mas nem por isso deixou de expressar publicamente os resultados de suas observações, de expor-se à contestação se necessário, de animar a controvérsia e provocar a busca de clareza na construção de uma consciência social e política do contemporâneo. Ele nunca se afastou de uma referência clássica da sociologia, que foi uma das orientações centrais da chamada “escola sociológica de São Paulo”, uma expressão muito forte na obra de Florestan Fernandes: a sociologia é a autoconsciência científica da sociedade, a definição perfeita da missão social do sociólogo.

Não é estranho, pois, que no outro extremo de sua vida esteja uma entrevista de poucos dias antes de sua morte, publicada uma semana depois de seu falecimento, contendo dura e objetiva análise do momento político nacional e internacional, apontando não só incoerências do partido governante e do próprio governante, mas também desencontros entre a consciência política oficial e a realidade social e política deste momento histórico. Ironia oportuna da vida diante da óbvia tentativa de manipular a cena funerária por parte do partido dominante, em face do distanciamento que a própria vida acadêmica interpôs entre ele e seu colega e amigo de muitos anos, Fernando Henrique Cardoso. Manipulação injusta e descabida que já indica mais um empenho de envolvimento dos mortos nas conveniências dos vivos, como se fez com Florestan Fernandes e Milton Santos, fazendo-os autores do discurso que não fizeram e adeptos de opções que quem os conheceu sabe que provavelmente não fariam.

Entre esses pontos demarcatórios da cronologia de uma vida intelectual fecunda e exemplar, há os muitos episódios que para essa geração fizeram entrecruzar-se a biografia e a História. É nesse embate que o italianinho de Itu (designação depreciativa com que era tratado pelas famílias tradicionais, quando criança, que o magoava profundamente) supera a trama da subalternidade tecida para colher e enredar o imigrante nas funções inferiores da economia. Da adversidade dos que o destino previsível condenara a anularem-se no trabalho dependente, nasce o intelectual, o cientista competente, o autor de uma obra que é uma das mais lúcidas interpretações do Brasil, uma expressão poderosa de nossa consciência social e política.

036ianni2Mas não se politize tudo nem se transforme Ianni num reles ideólogo de partido, que ele não era e nunca se dispôs a ser. Em sua obra havia uma lindíssima tensão entre os temas duros e politizáveis da Sociologia – como a objetividade, as relações de classe, as relações raciais, o Estado, o planejamento, o globalismo – e os temas próprios do que se poderia definir como uma estética sociológica. Nos indevidamente chamados de pequenos trabalhos, há poderosas indicações de uma grande obra de autor sensível ao propriamente poético da realidade social, da fala do homem simples, das expressões estéticas da complicada e dramática sociedade contemporânea, como no seminal “O jovem radical”, em “A mentalidade do homem simples” ou em “A solidão do cidadão Kane”. Ianni permitiu e quis que o belo e o poético contidos na vida social emergissem em muitos momentos de sua obra, uma forma poderosa de crítica do homem comum ao que acabou sendo a indigência das teses sobre a chamada “exclusão social”, a louvação da pobreza como virtude, como se o homem pobre fosse ao mesmo tempo um idiota cultural, dependente dos mediadores que o calaram e capturaram sua palavra e seu direito de palavra.

Na obra de Ianni, o homem simples fala de vários modos. Não apenas a fala simples, mas também  o refinamento poético de que os simples sabem revestir as suas poucas palavras, forma de contestar na prática a retilínea opressão da racionalidade que nos domina. Não há como sonhar sem ser poeta. Mais do que ninguém na sociologia brasileira, Octavio compreendeu com sociologia e poesia o silêncio dos banidos da cena histórica, dos que foram roubados de muitos modos, não só pela burguesia e o grande capital.

Octavio encerrou o seu poema sinfônico poucos dias antes da morte com uma conferência magistral sobre a arte na ciência, na mesma Faculdade de Filosofia da USP em que estudou, em que ensinou e que o amou apesar das amarguras de um destino comum descabidamente dilacerado nos desencontros da História.

 


* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e fellow de Trinity Hall e professor titular da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge (1993-1994). Foi aluno de Octavio Ianni na USP (1961-1964) e seu colega na antiga Cadeira de Sociologia I, de Florestan Fernandes. Dentre outros livros, autor de Florestan – Sociologia e consciência social no Brasil, Edusp – Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, São Paulo, 1998. Fonte: Jornal da Unicamp, Edição 248, Campinas (SP), de 19 a 25 de abril de 2004. Publicado na REA, nº 36, maio de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/036/36cmartins.htm

 

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REA – http://espacoacademico.wordpress.com/2013/02/23/ianni-a-poesia-na-sociologia/

A RAÇA DA UNIVERSIDADE PÚBLICA. José de Souza Martins

O julgamento da ação contra o regime de cotas raciais para ingresso na Universidade Nacional de Brasília é um julgamento histórico porque leva a justiça a decidir sobre os duradouros débitos de uma abolição mal feita da escravatura. A abolição não foi essencialmente motivada por intuitos humanitários nem pelo indiscutível reconhecimento da humanidade do negro em cativeiro. Nem o Estado nem os fazendeiros assumiram o ônus da escravidão que os beneficiara. Florestan Fernandes, em livro referencial da sociologia brasileira, já demonstrara os efeitos perversos dessa modalidade de abolição no estado de anomia e desorganização social, desamparo e pobreza, a que lançou o negro liberto. A abolição foi feita para libertar o senhor do fardo de seu escravo, cujo preço de mercado, com o fim do tráfico negreiro, tornou-o comparativamente oneroso e antieconômico em relação ao trabalho livre.

Em 1883, o abolicionista Joaquim Nabuco, que fora aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, de uma rica família da província de Pernambuco, publicou O Abolicionismo, um clássico do ideário da luta contra a escravidão. Nele, faz esta afirmação fundamental: “a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.” No entanto, citada como de outro autor, essa premissa fundamental não presidiu o embate judicial de agora nem influenciou a decisão final do STF. Embora estivesse em jogo a emancipação do povo brasileiro dos fantasmas das servidões que o assombram.

A escravidão indígena foi formalmente abolida em 1755 com o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão e a escravidão negra o foi, como sabemos, em 1888. Invocou a vice-procuradora geral da República o Diretório, em citação incorreta, para explicar o fenômeno da miscigenação e impugnar a definição minimalista de negro na presente disputa, mesmo que a maioria dos negros seja constituída de mestiços, nem por isso menos negros. Alegou que a miscigenação entre nós foi produto de uma engenharia social dos tempos coloniais, que determinava “aos homens brancos a união com mulheres negras como uma estratégia de povoamento e de criação de força de trabalho escravo…” Nada disso consta do Diretório que, para abolir a escravidão do índio e do pardo, suspendia as interdições estamentais que os alcançava e que degradava socialmente o branco que casasse com índia. É, social e juridicamente, outra a escravidão de que trata. Não a do debate no Supremo.

O lugar desse equívoco ficou evidente na intervenção da representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, que questionou o dualismo branco-negro que informava o julgamento e informa a controvérsia sobre as cotas. O censo demográfico de 2012 contou no país 48,2% de brancos, 6,9% de pretos, 44,2 de pardos e 0,7% de amarelos e índios. Lembrou que juntar negros e pardos numa única categoria, como se fossem todos negros, usurpa direitos de identidade dos pardos e mestiços.

A questão é mais complicada do que a de direitos supostamente gerados pela cor da pele e nem foi isso que o Supremo decidiu. O país discrimina e na discriminação é injusto. A cor da pele é o estigma de marca, como assinala Oracy Nogueira, em que se apoia o preconceituoso para discriminar. Se recorrêssemos a um dos mais insignes conhecedores da nossa questão racial, o sociólogo Roger Bastide, saberíamos que a negritude não está na cor da pele. Está nas estruturas profundas e oníricas da consciência negra. Nesse sentido, um número provavelmente expressivo dos que se consideram negros, no critério do regime de cotas, negros não são, não obstante a cor da pele, pois descendentes dos que no cativeiro foram culturalmente privados da alma dessa negritude. Estão meramente crucificados no estigma.

A decisão do STF legitima uma tendência histórica do Brasil contemporâneo, que é a do deslocamento dos seus eixos de orientação política da referência clássica e meramente teórica do cidadão abstrato da doutrina, das classes sociais da teoria e dos partidos políticos das ideologias. Essa decisão põe no centro das demandas e tensões os grupos sociais discretos e restritos que através dos movimentos sociais e das ONGs falam e reivindicam hoje pelos carentes de todo tipo, os socialmente lesados e os vulneráveis.

A decisão afeta a Universidade. Os negros beneficiados pelo regime de cotas têm demonstrado, segundo várias fontes, competência que os iguala aos seus colegas do regime tradicional. É evidente que o problema não está num suposto filtro racial para ingresso na Universidade e sim no critério de recrutamento que deixa de fora milhares de competências e talentos potenciais de jovens que precisam apenas de uma oportunidade e de um desafio para mostrar do que são capazes. Afeta porque turba positivamente o privilégio dos que acham que, tendo ingressado na Universidade, já não têm o dever de provar continuamente que têm direito de ocupar a vaga que nela ocupam. Agora, o terão.


 

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011);  Uma Arqueologia da Memória Social – Autobiografia de um moleque de fábrica, (Ateliê Editorial), 2011; A Sociedade Vista do Abismo, (Vozes, 2010); Exclusão Social e a Nova Desigualdade(Paulus,  2009). Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], Domingo, 29 de abril de 2012, p. J7.

Fonte: Blog da Revista Espaço Acadêmico – http://espacoacademico.wordpress.com/2012/05/05/a-raca-da-universidade-publica/

 


MACACO SALVA FILHOTE DE CACHORRO EM EXPLOSÃO NA CHINA, 2010

Esta foto corre as redes sociais. Foi flagrada após uma explosão de fábrica na cidade de Nanjing, China, em 28 de julho de 2010.

Entendo o apelo emocional e a ação que, por si só, é emocionante e nos prende. Mas sempre ando a ver por aí essa “humanização” de reflexos que estão na base da adaptação das espécies. Com raríssimas exceções já estudadas (não finalizadas – e nem poderiam) e conhecidas inclusive, como um intenso, complexo e admirável processo cognitivo vistos em macacos superiores, golfinhos e elefantes entre mais alguns animais, atitudes como essas acabam por se encontrar em reflexos, estímulos e instinto de sobrevivência. O que leva à proteção.

Portanto, categorias como compaixão (isso pertence à cultura – mas não é de sua propriedade inalterada -, pertence ao processo de hominização – hominídeos > cultura [produzindo trabalho] > Homo sapiens), que simbolicamente chamamos de gênese do Homo demens, momento quando aprendemos a ter sentimento, afeição, sorrir, dor (não somente física), raiva etc.; como bondade, preocupação (que pressupõe o abstrato anteriormente ao ato concreto, a projeção da realidade no espaço temporal e cognitivo do animal humano); consciência não são adequadas a questões como essas.

Noutros termos: não se trata de desconstruir toda a intensidade da imagem e a beleza (e a tragédia) dos fatos que se repetem, como o da foto. Mas precisamos ter claro que “humanizamos” atitudes de outras espécies. E reduzimos a percepção de outros animais ao mesmo patamar ou nível da percepção hominídea. Os reflexos e estímulos apropriados pelo instinto forjado no processo de adaptação da vida devem ser compreendidos no patamar que lhe cabem, a partir do que já produzimos como conhecimento na escala humana. Enquanto não conseguimos comprovar o contrário do que se opina aqui, o mais sensato é termos muita calma nessa hora.

(PS.: à guisa de informação pra embasar um pouco essas questões, claro, dentro do quase nada tempo que sobra, se sobrar, Edgar Morin, num livrinho já rodado, nem reeditado mais, mas que se acha nas melhores universidades e sebos, trata bem dessa questão: O Enigma do Homem: para uma nova antropologia, em especial as 3 primeiras partes com seus respectivos capítulos: “A Junção Epistemológica”, “A Hominização (A Antropossociogênese)” e “Um Animal dotado de Desrazão” (nesta, especial atenção ao seus caps. 1 e 2, respectivamente, ‘Sapiens-Demens’ e ‘ A Hipercomplexidade’).

MAS QUE A IMAGEM É MUITO LOUCA, AH ISSO É!

EVOLUÇÃO HUMANA. ANTES DE DOMINARMOS A TERRA

Fontes: You Tube e Documentários Vários WordPress (http://documentariosvarios.wordpress.com/2012/02/02/evolucao-humana/)

Evolução humana

A evolução humana, ou antropogênese, é a origem e a evolução do Homo sapiens como espécie distinta de outros hominídeos, dos grandes macacos e mamíferos placentários. O estudo da evolução humana engloba muitas disciplinas científicas, incluindo a antropologia física, primatologia, a arqueologia, linguística e genética.

O termo “humano” no contexto da evolução humana, refere-se ao gênero Homo, mas os estudos da evolução humana usualmente incluem outros hominídeos, como os australopitecos. O gênero Homo se afastou dos Australopitecos entre 2,3 e 2,4 milhões de anos na África. Os cientistas estimam que os seres humanos ramificaram-se de seu ancestral comum com os chimpanzés – o único outro hominins vivo – entre 5 e 7 milhões anos atrás. Diversas espécies de Homo evoluíram e agora estão extintas. Estas incluem o Homo erectus, que habitou a Ásia, e o Homo neanderthalensis, que habitou a Europa. O Homo sapiens arcaico evoluiu entre 400.000 e 250.000 anos atrás.

A opinião dominante entre os cientistas sobre a origem dos humanos anatomicamente modernos é a “Hipótese da origem única”, que argumenta que o Homo sapiens surgiu na África e migrou para fora da continente em torno 50-100,000 anos atrás, substituindo as populações de H. erectus na Ásia e de H. neanderthalensis na Europa. Já os cientistas que apoiam a “Hipótese multirregional” argumentam que o Homo sapiens evoluiu em regiões geograficamente separadas.

XINGU, AMERÍNDIOS, BRASIL E UFC

por José Maria Arruda, filósofo, via Facebook

De todas as imagens que vi nos últimos dias, essa foi a que me causou algum impacto… Positivo. Não gosto do tal UFC. Questão estética para mim. Mas gostei da idéia do Anderson ir aprender a luta dos índios do Xingu para incorporar na sua. A idéia de aprender com uma cultura verdadeiramente nativa, anterior à colonização européia… Culturas que sempre foram negadas em seu valor e dizimadas em sua existência. Nossa maior luta não é da UFC… Mas a luta contra a Casa Grande e seus capatazes!

ZÉ MARIA POLEMIZA, AO MEU VER, COM PROPRIEDADE:

“O que poderia o corpo e suas formas de luta contra a pólvora dos portugueses, espanhóis, ingleses e franceses? O que pode o corpo?”

CONTRA A ÉTICA DO VAREJO – Entrevista com Renato Janine Ribeiro

 

Crítica à embriaguez presente nas novelas da emissora contrasta com o estímulo à bebedeira no BBB

ESTADÃO – Mais importante que debater o suposto estupro no Big Brother Brasil é refletir sobre a violação da intimidade nos reality shows, diz filósofo.

A polêmica sobre a natureza e a intensidade das carícias sob um certo edredom, numa certa madrugada, ao longo da 12ª edição do Big Brother Brasil, da Rede Globo, perdeu força com o depoimento à polícia da participante supostamente vítima de estupro. Sem se lembrar bem do que ocorrera na noite anterior, num quarto escuro vigiado por câmeras, a moça disse que tudo fora consentido. Mas a discussão não saiu do ar – especialmente entre internautas mais exaltados, via redes sociais. Justificam-se manifestações tão apaixonadas? “Eu jamais defenderia o fim dos reality shows, mas esta é uma oportunidade de discutir os limites desse tipo de programa”, avalia o filósofo e professor da Universidade de São Paulo Renato Janine Ribeiro. 

Mestre pela Universidade Paris 1 em 1973 e doutor pela USP em 1984 – ano-título do romance de George Orwell que imortalizou o termo ‘Grande Irmão’, que dá nome ao programa – Janine Ribeiro concebeu e apresentou uma série de televisão sobre Ética na TV Futura, depois exibida na Globo, e notabilizou-se, em diversos artigos, pela crítica de produtos dos meios de comunicação de massa.

Na entrevista a seguir ele questiona a exploração da intimidade como artifício para alavancar audiência, especula se o direito individual à privacidade é renunciável e repudia o recurso à embriaguez para elevar a temperatura entre participantes de uma competição – aspecto contra o qual se manifestara, na quarta-feira, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, ex-guardião do ‘padrão Globo de qualidade’ e pai de Boninho, diretor do BBB: “Não me atrai esse conceito que eles pegaram da Holanda, em que ficam dando bebida alcoólica e promovendo festinhas”.

Para Renato Janine Ribeiro, é preciso tirar o olho da fechadura dos pequenos escândalos para vislumbrar o que está por trás dessa controvertida fórmula de entretenimento televisivo. “Não adianta abrir mão da ética no atacado e depois exigir um preceito ético num detalhe.”

Por que o sr. diz que reality shows são ‘não éticos no atacado’?

Boa parte explora um tipo de paixão humana que não é positiva. Eles estimulam a vontade de aparecer, de se exibir, com uma sexualidade carregada. As pessoas são incitadas por esse tipo de programa a ficar cada vez mais interesseiras e fazer uso da intimidade para subir na vida. A sexualidade, algo do mundo íntimo, ligada a um aprofundamento da relação com o outro, passa a ser vista como simples instrumento de conquista. Não é um programa que contribua de alguma forma para as pessoas serem melhores, mais felizes ou mais inteiras. Nesse sentido, entrar na discussão do que chamei de ‘varejo’, os escândalos e ‘injustiças’ do programa, é acreditar que a regra geral é boa. Não adianta abrir mão da ética no atacado e depois exigir um preceito ético num detalhe.

Em que sentido?

A expressão de (filósofo prussiano Immanuel) Kant de que o ser humano deve ser considerado fim e não meio é totalmente violada nesse tipo de programa. E, embora essa formulação valha muito mais como ideal do que como realidade, aqui o próprio ideal – mesmo que de difícil consecução – é abandonado. O outro passa a ser simplesmente um instrumento, a ser seduzido e conquistado. É por isso que existe todo um preparo dos candidatos para ir ao programa, que consiste em malhar, ficar sarado, aprender a manipular o sentimento dos outros, formar um casal para capturar a atenção do público. Os romances se repetem artificialmente.

Como determinar o que é ou não ético em um programa de televisão?

A discussão parece aquela boneca russa que quando a gente abre tem outra dentro. No caso em questão, o rapaz é acusado de um estupro que segundo a própria moça ele não teria cometido. Nós poderíamos discutir, então, se foi correto ou não expulsá-lo do programa. Mas, a meu ver, isso é o varejo, um debate de pouco interesse, pois significa antes aceitar a regra geral do programa. E quando você vai para um programa desses, que exibe a sua intimidade e no qual vai usá-la como moeda para conquistar alguém ou alguma coisa, corre o risco de abrir mão da dignidade.

Entre as diversas críticas que surgiram na blogosfera, uma argumentava que, embora alguém que coloque uma webcam em sua casa e explore a própria intimidade não possa ser questionado legalmente, se a exploração é feita por terceiros então há um problema. O sr. concorda?

O argumento de que o direito à privacidade seria irrenunciável é bom. Existem direitos dos quais não se pode abrir mão. Por exemplo, não posso entender que a liberdade que tenho sobre mim mesmo me autorize a me escravizar. Ou a autorizar outra pessoa a me matar – isso continua sendo um crime. Da mesma forma, existe um elemento da dignidade que não deveria ser violado. Um exemplo são os campeonatos de arremesso de anões (o da Flórida, nos EUA, foi proibido em 1989). Os anões estavam de acordo com o jogo. Mas por quê? Certamente por necessidade. Se você admitir que uma sociedade possa acuar as pessoas até a fome e, nessa situação, elas aceitem situações degradantes para divertir outras, está admitindo o sadismo e a crueldade como coisas normais.

Há aspectos positivos nos reality shows?

Houve pelo menos um bom momento na história do BBB, quando o (atual deputado federal pelo PSOL) Jean Wyllys tomou conta dele. Ele é uma pessoa muito inteligente, tinha uma visão interessante do que fazer lá dentro e houve um enfrentamento entre o preconceito e o homossexualismo. Isso foi positivo.

E outros reality shows, como Mulheres Ricas, Casa dos Artistas, etc.?

Não sei dizer, porque não os assisti. Em termos gerais, eu diria que um programa que coloca a intimidade como mercadoria é complicado e preocupante. Nos primeiros BBBs, aparentemente, você tinha outros critérios de seleção, uma diversidade maior de pessoas. Se pegar o reality da Globo que o precedeu, No Limite, quem ganhou foi uma cabeleireira gorda (Elaine Cristina Cosmo de Melo). Hoje, parece ter mudado o critério pelo qual as pessoas são selecionadas para participar. No formato atual, uma Elaine dificilmente ganharia. Ela nem entraria no jogo, provavelmente.

Antes de afastar o participante acusado de estupro, o diretor do programa, Boninho, saiu em defesa dele, afirmando que estaria sendo vítima de racismo. Há uma banalização da denúncia de preconceito racial no Brasil?

O que acontece é o seguinte: toda sociedade tem uma linguagem. A linguagem, 50, 60 anos atrás, seria em grande parte religiosa. Os militares deram o golpe em nome da ‘civilização ocidental e cristã’. Eles às vezes falavam em democracia, mas muito mais em civilização ocidental e cristã. Ninguém hoje, apesar de sermos um país de maioria católica, teria coragem de mencionar o ‘cristão’ porque isso significaria excluir judeus, cultos afro-brasileiros, budistas… Então, hoje nós temos uma linguagem que passa pela igualdade de gênero, das pessoas, pelo antirracismo. E qualquer discussão hoje vai incluir essa linguagem. Não sei se há banalização – ela é simplesmente a linguagem do nosso tempo. Se sobre o episódio em questão no BBB alguém evocasse ‘uma conduta ofensiva a Deus’, dificilmente o argumento teria repercussão. Ao passo que a questão do racismo ou do gênero acaba sendo mais eficaz. Isso tem um lado positivo pois significa a vitória de um discurso um pouco melhor. Outra coisa é verificar se ele se aplica ao caso.

O comportamento dos internautas que criticaram o programa nas redes sociais também teve desvios. Chegou a ser veiculado um texto sobre o assunto falsamente atribuído ao escritor Luís Fernando Verissimo…

Você não pode entrar numa discussão ética e entender que o fim justifique os meios – que, para denunciar um erro, um texto com a grife do Veríssimo seja bom. Aliás, é algo que me intriga na internet. Há um texto atribuído a (escritor argentino Jorge Luis) Borges que é até interessante. Mas a maior parte deles é indigente. O (jornalista Arnaldo) Jabor também é vítima disso e os chama de textos de “sentimentos fáceis”. O que me intriga é o seguinte: por que certos textos precisam ser publicados com autoria alheia? E por que as pessoas têm tanta dificuldade em identificar as finger prints do autor que costumam ler e gostar? Elas nem notam! E é curioso que haja algo neles coincidente com os reality shows. Se nesses programas a questão é “aparecer, ser prestigiado, repercutir na mídia”, o mesmo ocorre nesses textos, em que a argumentação não é tão importante quanto a falsa autoria.

Os fatos da semana levantaram um debate sobre o consentimento nas relações sexuais. Como se define o que é ético ou não nesse terreno?

É muito difícil. O que está presente na legislação hoje é o princípio liberal de que a vontade do indivíduo é soberana no que diz respeito a sua vida pessoal. O problema é que quando se lida com a sexualidade a questão da vontade é muito complexa. Tudo depende do contexto e é decidido à posteriori. A Suécia tem uma das legislações mais duras do mundo em relação ao estupro e o resultado disso é que os índices desse tipo de crime lá são relativamente altos. Uma pessoa lá, depois da relação sexual, pode voltar atrás da decisão. Foi o que ocorreu com (ativista e criador do Wikileaks Julian) Assange (acusado de estupro por uma mulher que inicialmente havia consentido em se relacionar com ele). A sexualidade lida com a dimensão do desejo, não da vontade. A vontade é consciente, quase racional, e tem a ver com a dimensão do ego. Já o desejo é algo que pode aparecer inclusive contrariando o que a vontade diz. A nossa legislação sobre o tema parece ter uma contradição e uma impossibilidade. A contradição é: por um lado, tudo foi remetido ao mundo do privado, se sou homossexual, se quero participar de uma orgia ou um encontro sadomasoquista, nada disso é ilícito. O que é correto. Por outro lado, como a questão passa a ser de vontade, fica muito difícil saber em que isso consiste. E os fatos tornam-se muito difíceis de se apurar: é palavra contra palavra.

A ambiguidade da situação de consentimento sexual não foi agravada pelo fato de que os integrantes do programa ingeriram álcool?

Isso é um grande problema. Especialmente porque temos hoje toda uma sociedade – e a própria emissora – fazendo campanha contra a embriaguez. Mesmo nas novelas, se você for ver os princípios éticos que elas sustentam, que de alguma forma estão modulando a ética neste país, atacando crimes de ódio, etc. e tal, nota que há um conflito. Está claro que a bebedeira promovida no BBB tem o objetivo justamente de provocar atos sexuais como o que resultou nessa polêmica toda.

O culto ao hedonismo e ao exibicionismo, por parte dos integrantes, e o estímulo ao voyeurismo, por parte do público, são eticamente justificáveis?

Não sou contra o hedonismo como busca de prazer e mesmo o exibicionismo e o voyeurismo têm seu lugar, na experiência humana. Um voyeurismo discreto entre pessoas que estão de acordo pode ser muito interessante e estimulante. O complicado é isso em rede nacional. Pois passa a ser uma espécie de recomendação. E, como eu disse antes, se abrirmos mão do ideal kantiano de ver o ser humano como fim e não como meio, acabou. O outro vira um mero objeto, um meio para se ganhar, aparecer, tornar-se alguém de sucesso. Eu jamais defenderia a proibição desses programas, mas o que ocorreu acaba sendo uma oportunidade de se discutir seus limites.

Publicado em O Estado de S. Paulo em 22 jan. 2012

http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,contra-a-etica-do-varejo,825722,0.htm

A CONTRA-CULTURA NA CRISE DE CIVILIZAÇÃO. Miguel Urbano Rodrigues

Quando o homem no Neolítico criou as primeiras civilizações na Mesopotâmia, no Egipto, na China, ocorreram crises cujo desfecho foi a destruição de quase todas. 

A única grande civilização que, transformando-se, sobreviveu até à actualidade foi a que surgiu e se desenvolveu na China. 

Todas as outras desapareceram, mas muitas deixaram sementes que floresceram numa multiplicidade de povos. 

As causas da morte das civilizações, na acepção ampla e restrita da palavra suscitam polémicas entre os historiadores. A decadência de algumas prolongou-se ao longo de séculos, marcada por crises devastadoras. 

Assim aconteceu com Roma e com outras cujas elites dirigentes foram incapazes de compreender que as suas crises endémicas se agravavam menos em consequência de ameaças exteriores do que pela própria dinâmica de rupturas sociais internas. 

Obviamente, as generalizações são perigosas. Diferiram muito os processos de ruptura civilizacional na Pérsia Aqueménida, o primeiro estado a aspirar ao domínio do mundo conhecido, no subcontinente indiano, e na Europa Ocidental após a desagregação do Império Romano do Ocidente. 

Também na Ásia, morto o macedónio Alexandre, o seu império esfacelou-se quase imediatamente. Mas a civilização helenística implantou-se numa área vastíssima, do Mediterrâneo Oriental às fronteiras da China e da Índia, deixando marcas profundas no caminhar dos povos. 

Na Europa Ocidental, a tomada de Roma pelos Hérulos, em meados do século V, não significou o fim de uma civilização ao contrário do que afirmam muitos historiadores. Na Itália, nas Gálias, na Península Ibérica, a herança de Roma, golpeada, não desapareceu numa época de grande desordem. A Alta Idade Media, como afirmam Henri Pirenne e Marc Block, não foi um tempo de escuridão, uma fase de regressão absoluta. Aliás, no Mediterrâneo Oriental, na área onde se falava grego, Bizâncio continuou por mil anos a ser pólo de uma grande civilização. 

A noção de civilização confunde-se por vezes com a de cultura. Uma cultura nem sempre coincide com a existência de uma civilização. Os Mongóis que, na sua aventura irrepetível dominaram o mundo por um tempo breve do Pacifico ao Adriático, saíram das estepes com uma cultura própria, mas não criaram uma civilização. Nenhum outro povo cometeu, no espaço de décadas, um genocídio de proporções comparáveis. Na fase da conquista destruíram tudo o que encontraram no mundo dos sedentários. Mas durou pouco a violência dos gengiskanidas. Na China sinizaram-se, no Irão islamizaram-se e foram absorvidos pela cultura persa. Em ambos os casos, o nómada, assimilado pela cultura dos vencidos, tornou-se o seu maior defensor. 

UM FLAGELO CULTURAL 

As grandes crises europeias não desencadearam, desde o fim do Império Romano do Ocidente, crises de civilização. 

A grande peste do século XIV e a Guerra dos 30 Anos, que despovoou a Alemanha, a as hecatombes da I e II Guerras Mundiais, foram acontecimentos trágicos com consequências políticas, sociais e económicas que alteraram profundamente a vida na Europa. O mesmo se pode afirmar da Revolução Francesa de 1789 e da Revolução Russa de Outubro de 1917. De ambas resultaram rupturas que destruíram estruturas seculares, modificando drasticamente as relações sociais. 

Mas aquilo a que se pode chamar o “modelo” civilizacional permaneceu, no essencial. O próprio Lenine sublinhou mais de uma vez que a Rússia revolucionária não podia abdicar da herança cultural acumulada ao longo dos séculos, incluindo a da burguesia. Para ele era fundamental a incorporação na nova cultura desse legado da História da humanidade. 

No último quartel do século XX ocorreu um fenómeno com implicações, pouco estudadas, que passam ainda despercebidas a historiadores e sociólogos. A vida na Terra, em muitos aspectos, mudou mais em trinta anos do que nos duzentos anteriores. 

O homem realizou prodigiosas conquistas. Mas a revolução técnico-científica, hegemonizada por um sistema de poder desumanizado, foi colocada a serviço de um projecto imperialista que, para sobreviver, exige, na prática, a transformação do homem num ser passivo, robotizado. 

Esse objectivo é uma consequência da crise estrutural do capitalismo. A resistência dos povos às guerras e crimes das ultimas décadas dela inseparáveis foi atenuada, quase neutralizada, pela imposição, em escala planetária, de uma cultura – na realidade contra-cultura – que é componente importante da crise de civilização. 

O pólo de tal cultura localiza-se nos Estados Unidos onde ela foi gerada e donde irradiou, contaminando o Canadá, a Europa, a América Latina, o Japão, a Ásia Oriental, a Austrália e hoje a quase totalidade dos povos. 

A interacção entre os mecanismos do capitalismo e esse fenómeno cultural, epidémico, é subtil, sendo difícil de identificar em muitas das suas manifestações. O objectivo do capital é a sua multiplicação ininterrupta; o acesso do homem à felicidade possível não lhe interessa. 

A presença e os efeitos da contra-cultura estadounidense – qualificada de mc world culture por alguns sociólogos – são identificáveis em áreas muito diferenciadas, abrangendo, pode-se afirmar, a totalidade da vida. 

A ofensiva por vezes quase invisível, mas com frequência avassaladora, manifesta-se nas frentes política, social, económica, militar e, evidentemente, na cultural. 

Sem o controlo quase absoluto dos meios de comunicação social e dos audiovisuais pelo sistema de poder a disseminação epidémica da contra-cultura exportada pelos EUA, país onde, registe-se, coexiste em conflito com a cultura autêntica, seria impossível. 

A televisão, o cinema, a rádio, a imprensa escrita e, agora, sobretudo a internet cumprem um papel fundamental, imprescindível, no avanço de uma contracultura que nos países industrializados alterou profundamente nos últimos anos o quefazer dos povos e a sua atitude perante a existência. A mudança é transparente actuando como um vendaval sobre adultos, adolescentes e crianças. 

A construção do homem formatado principia na infância e exige uma ruptura com o emprego tradicional dos tempos livres. O convívio tradicional, incluindo o do ambiente familiar, é substituído por ocupações lúdicas frente à televisão e ao computador, com prioridade para jogos violentos e filmes que difundem a contracultura. 

As horas dedicadas à leitura de obras que transformam o conhecimento em cultura passaram a ser escassas ou inexistentes. Com a peculiaridade de os escritores de qualidade, que formam, serem trocados por romancistas light, alguns apresentadores de televisão, e pelas revistas de fofocas. 

No projecto de vida, a maioria dos jovens tem hoje como meta o sucesso mediático, ser colunável, ganhar uma celebridade efémera mesmo que para tal abdiquem da dignidade. 

As novelas da TV desempenham neste panorama um papel importante como factor de embrutecimento do espírito. 

A contracultura actua intensamente no terreno da música, da canção, das artes plásticas. Apreciar uma sinfonia de Beethoven, um concerto de Bach tornou-se atitude rara. A contra-música que empolga hoje multidões juvenis é a de estranhas personagens que gritam e gesticulam exibindo roupas exóticas em gigantescos palcos, numa atmosfera ensurdecedora, em rebeldia abstracta contra o vácuo. 

O jornalismo degradou-se. Transmite-se a mensagem de uma falsa objectividade para ocultar que os media, ao serviço da engrenagem do poder, são, com raras excepções, instrumentos de difusão da ideologia dominante. A mediocridade dos jornalistas reflecte aliás a queda do nível cultural. 

No caso português, o 25 de Abril abriu as portas do ensino secundário e universitário a centenas de milhares de jovens. Mas a instrução não gera automaticamente cultura. Ao sistema somente interessa formar quadros que sirvam com docilidade o capital. Das universidades saem anualmente fornadas de moços que em matéria de saber são analfabetos com diploma. 

Obviamente, o homem formatado – que traz à memória os robotizados das utopias de Huxley e Orwell – não tem consciência da sua condição de indivíduo manipulado. Quase se orgulha de ser muito diferente das gerações que o precederam 

REESCREVER A HISTÓRIA 

A contra-cultura estadounidense, dominadora, não poderia ter-se implantado em escala mundial sem uma campanha, paralela, desenvolvida simultaneamente. Em Washington os ideólogos do sistema perceberam que era indispensável reescrever a História. Por outras palavras, falsificá-la. Uma máquina mediática gigantesca empreendeu essa tarefa. O cinema, a televisão, a imprensa, a internet, com a cumplicidade de intelectuais das grandes universidades, das Forças Armadas, de uma legião de jornalistas, de membros do Congresso e de destacadas personalidades da Finança, foram os instrumentos utilizados para ocultar ou deformar a História profunda de que nos fala Lucien Fèbvre, e substitui-la por uma História inventada, ficcional, que corresponda ao interesse e fins do capital. 

A falsificação – é a palavra adequada – principia pelas antigas civilizações mediterrânicas. Em filmes famosos, Hollywood apresentou da Grécia de Péricles, da Pérsia de Dário, da Roma de César, heróis que transmitem sobre a democracia, a liberdade, a violência, o progresso económico, até o amor, conceitos e ideias supostamente progressistas, usando o discurso do americano “ideal” do século XX. 

Essa agressão à História é particularmente nociva e perigosa para as massas quando incide sobre temas e personagens contemporâneos. A versão estadounidense da II Guerra Mundial, por exemplo, é uma grosseira deturpação da História. E o objectivo foi em grande parte atingido. Mundo afora centenas de milhões de pessoas crêem que foram os Estados Unidos, em defesa da liberdade e da civilização, quem, em batalhas épicas, enfrentou e destruiu o poder militar da Alemanha nazi. O papel desempenhado pela União Soviética teria sido secundaríssimo. A mentira é tamanha que episódios irrelevantes nos combates da Sicília ou numa ofensiva do general Patton são guindados a epopeias da humanidade, enquanto as batalhas de Stalinegrado e Kursk merecem atenção mínima. 

O anticomunismo primário tem sido ao longo de décadas uma prioridade nessa permanente ofensiva do sistema do capital para reescrever a História. 

A satanização do socialismo e a apologia do capitalismo como sistema supostamente democrático, e até progressista, são ingredientes básicos no massacre mediático orientado para a formatação de um tipo de homem alienado, inofensivo para a engrenagem do poder. 

Em Portugal a classe dominante tem-se comportado como discípula aplicada dos mestres do imperialismo estadounidense e europeu. 

Diariamente os canais de televisão promovem mesas redondas que falsificam grosseiramente a História. Uma corte de “analistas”, apresentados como especialistas em matérias que, afinal, ignoram, palram sobre a totalidade do conhecimento humano, desde a actual rebelião do mundo árabe às cruzadas pela “democratização” do Afeganistão e do Iraque, passando pelo buraco do ozono e a poluição dos oceanos. 

Seria um erro subestimar os efeitos negativos dessa torrente de disparates e mentiras. Ela contribui para confundir, e enganar uma parcela significativa do povo português. 

Sem a anestesia da consciência social seria impensável que no pais do 25 de Abril a memória do general Vasco Gonçalves seja rotineiramente insultada por colunistas de lugar cativo dos grandes diários, enquanto aventureiros da politica e cavalheiros da extrema-direita receberam a Grã Cruz da Ordem da Liberdade de sucessivos Presidentes da República. 

Que fazer, então, perante um panorama desolador, numa época de crise quando uma criatura como o Primeiro-ministro, porta-voz oficial da contra-cultura, ofende a palavra democracia exibindo-se como seu defensor e intérprete? 

Lutar, lutar, lutar, em Portugal e no vasto mundo, sem sermos condicionados pelo calendário da vitória distante. 

A humanidade resistirá à contra-cultura que a ameaça. No caminhar da História, o capitalismo contém as sementes da sua própria destruição.

Vila Nova de Gaia, Março/2011

O original encontra-se em http://www.odiario.info/?p=2002

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .