IANNI, A POESIA NA SOCIOLOGIA

por José de Souza Martins*Ianni

 

Octavio Ianni falece no mesmo ano em que completaria meio século de vida intelectual intensamente dedicada à Sociologia: formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em 1954. O meio século do que foi em sua vida, e na vida de todos nós que com ele convivemos, o meio século dos extremos: da euforia desenvolvimentista da era JK aos tempos tenebrosos da ditadura militar, de que ele foi uma das vítimas, aos tempos, enfim, de uma era de esperança e, ao que parece, por uma sua entrevista recente, de desilusões políticas.

Nesses extremos, um primeiro trabalho de Octavio sobre o samba de terreiro em Itu, sua amada terra caipira, foi o capítulo inicial de uma rica preocupação com o negro, a cultura popular, o mundo caipira, o homem simples, como ele o denominou num belo e definitivo ensaio. E também com a alegria que atravessa desde sempre nossos dilemas e nossas contradições para nos dizer que a vida é um pontilhado de opostos, único jeito de construir o novo e o mundo novo. Esse estudo é o prenúncio da obra de um homem permanentemente devotado à compreensão sociológica das diferenças sociais, das injustiças a elas associadas, das vacilações na busca de meios de superá-las. Mas nunca a obra do ingênuo do palavrório radical, tão em moda e tão inócuo, da crítica superficial e infundada.

Ao contrário, Ianni foi um pensador sereno e sensato. Ele foi um artesão do pensamento crítico no Brasil, autor de uma obra marcada de iluminuras que anunciam a estética de cada texto que escrevia para dizer-nos que o pensamento crítico não é uma farra do espírito e do denuncismo barato e incompetente. Para ele, o pensamento crítico é o pensamento responsável e fundamentado, acima das facções de toda ordem, expressão da neutralidade ética, mas não da indiferença social e política, produto da descoberta paciente, da indagação organizada, da investigação científica cuidadosa e não raro demorada. Lembro dele, meu professor no curso de graduação, explicando-me em sua apertada sala lá da rua Maria Antônia, que na sociologia a construção de uma interpretação dos dados de uma pesquisa é como a elaboração de uma sinfonia: a partir da descoberta do tema o sociólogo vai descobrindo desdobramentos, vai compondo sua obra, sua interpretação, as conexões de sentido, a explicação científica, o todo que se esconde atrás do factual, a universalidade contida no singular, no discreto e até no minúsculo.

036ianniIanni nunca se propôs a ser um pai da pátria, de dedo em riste discursando verdades incontestáveis, como se fosse dele o mandato de apontar rumos e denunciar descaminhos. Mas nem por isso deixou de expressar publicamente os resultados de suas observações, de expor-se à contestação se necessário, de animar a controvérsia e provocar a busca de clareza na construção de uma consciência social e política do contemporâneo. Ele nunca se afastou de uma referência clássica da sociologia, que foi uma das orientações centrais da chamada “escola sociológica de São Paulo”, uma expressão muito forte na obra de Florestan Fernandes: a sociologia é a autoconsciência científica da sociedade, a definição perfeita da missão social do sociólogo.

Não é estranho, pois, que no outro extremo de sua vida esteja uma entrevista de poucos dias antes de sua morte, publicada uma semana depois de seu falecimento, contendo dura e objetiva análise do momento político nacional e internacional, apontando não só incoerências do partido governante e do próprio governante, mas também desencontros entre a consciência política oficial e a realidade social e política deste momento histórico. Ironia oportuna da vida diante da óbvia tentativa de manipular a cena funerária por parte do partido dominante, em face do distanciamento que a própria vida acadêmica interpôs entre ele e seu colega e amigo de muitos anos, Fernando Henrique Cardoso. Manipulação injusta e descabida que já indica mais um empenho de envolvimento dos mortos nas conveniências dos vivos, como se fez com Florestan Fernandes e Milton Santos, fazendo-os autores do discurso que não fizeram e adeptos de opções que quem os conheceu sabe que provavelmente não fariam.

Entre esses pontos demarcatórios da cronologia de uma vida intelectual fecunda e exemplar, há os muitos episódios que para essa geração fizeram entrecruzar-se a biografia e a História. É nesse embate que o italianinho de Itu (designação depreciativa com que era tratado pelas famílias tradicionais, quando criança, que o magoava profundamente) supera a trama da subalternidade tecida para colher e enredar o imigrante nas funções inferiores da economia. Da adversidade dos que o destino previsível condenara a anularem-se no trabalho dependente, nasce o intelectual, o cientista competente, o autor de uma obra que é uma das mais lúcidas interpretações do Brasil, uma expressão poderosa de nossa consciência social e política.

036ianni2Mas não se politize tudo nem se transforme Ianni num reles ideólogo de partido, que ele não era e nunca se dispôs a ser. Em sua obra havia uma lindíssima tensão entre os temas duros e politizáveis da Sociologia – como a objetividade, as relações de classe, as relações raciais, o Estado, o planejamento, o globalismo – e os temas próprios do que se poderia definir como uma estética sociológica. Nos indevidamente chamados de pequenos trabalhos, há poderosas indicações de uma grande obra de autor sensível ao propriamente poético da realidade social, da fala do homem simples, das expressões estéticas da complicada e dramática sociedade contemporânea, como no seminal “O jovem radical”, em “A mentalidade do homem simples” ou em “A solidão do cidadão Kane”. Ianni permitiu e quis que o belo e o poético contidos na vida social emergissem em muitos momentos de sua obra, uma forma poderosa de crítica do homem comum ao que acabou sendo a indigência das teses sobre a chamada “exclusão social”, a louvação da pobreza como virtude, como se o homem pobre fosse ao mesmo tempo um idiota cultural, dependente dos mediadores que o calaram e capturaram sua palavra e seu direito de palavra.

Na obra de Ianni, o homem simples fala de vários modos. Não apenas a fala simples, mas também  o refinamento poético de que os simples sabem revestir as suas poucas palavras, forma de contestar na prática a retilínea opressão da racionalidade que nos domina. Não há como sonhar sem ser poeta. Mais do que ninguém na sociologia brasileira, Octavio compreendeu com sociologia e poesia o silêncio dos banidos da cena histórica, dos que foram roubados de muitos modos, não só pela burguesia e o grande capital.

Octavio encerrou o seu poema sinfônico poucos dias antes da morte com uma conferência magistral sobre a arte na ciência, na mesma Faculdade de Filosofia da USP em que estudou, em que ensinou e que o amou apesar das amarguras de um destino comum descabidamente dilacerado nos desencontros da História.

 


* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e fellow de Trinity Hall e professor titular da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge (1993-1994). Foi aluno de Octavio Ianni na USP (1961-1964) e seu colega na antiga Cadeira de Sociologia I, de Florestan Fernandes. Dentre outros livros, autor de Florestan – Sociologia e consciência social no Brasil, Edusp – Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, São Paulo, 1998. Fonte: Jornal da Unicamp, Edição 248, Campinas (SP), de 19 a 25 de abril de 2004. Publicado na REA, nº 36, maio de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/036/36cmartins.htm

 

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REA – http://espacoacademico.wordpress.com/2013/02/23/ianni-a-poesia-na-sociologia/

MOVIMENTO ZEITGEIST EM PORTUGAL

MOVIMENTO ZEITGEIST EM PORTUGAL

“Toda a indústria da propaganda e a sociedade de consumo entrariam em colapso se as pessoas se tornassem iluminadas e deixassem de tentar encontrar as suas identidades através dos objectos.” 

– Eckhart Tolle

CONSIDERAÇÕES EM TORNO DO ATO DE ESTUDAR

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PAULO FREIRE

Toda bibliografia deve refletir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá-la, ou se a bibliografia em si mesma, não é capaz de desafiá-los, se frustra, então a intenção fundamental referida.

A bibliografia se torna um papel inútil, entre outros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.

Essa intenção fundamental de quem faz a bibliografia exige um triplo respeito: a quem ela se dirige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de títulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere, deve saber o que está sugerido e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmática de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará mais concreto na medida em que comece a estudar os livros citados e não só a lê-los por alto, como se os folheasse, apenas.

Estudar é, realmente um trabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura crítica sistemática. Exige disciplina intelectual que não se ganha a não ser praticando-a.

Isto é, precisamente, o que a “educação bancária”[1] não estimula. Pelo contrário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espírito investigador, a criatividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável criticidade.

Este procedimento ingênuo ao qual o educando é submetido, ao lado de outros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puramente mecânica, enquanto, pela imaginação, se deslocam para outras situações. O que se lhes pede, afinal não é a compreensão do conteúdo, mas sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a memorização do mesmo. Se o estudante consegue fazê-lo, terá respondido ao desafio.

Numa visão crítica, as coisas se passam diferentemente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objetivo é apropriar-se de sua significação profunda.

Esta postura crítica, fundamental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:

a) Que assuma o papel de sujeito deste ato.

Isto significa que é impossível um estudo sério se o que estuda se põe em face do texto como se estivesse magnetizado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágica. Se se comporta passivamente, “domesticamente”, procurando apenas memorizas as afirmações do autor. Se se deixa “invadir” pelo que afirma o autor. Se se transforma numa “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele retira do texto para pôr dentro de si mesmo.

Estudar seriamente um texto é estudar o estudo de quem, estudando, o escreveu. É perceber o condicionamento histórico-sociológico do conhecimento. É buscar as relações entre o conteúdo em estudo e outras dimensões do conhecimento. Estudar é uma forma de uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta maneira, não é possível a quem estuda, numa tal perspectiva, alienar-se ao texto, renunciando assim à sua atitude crítica em face dele.

A atitude crítica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Uma atitude de adentramento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez mais lucidamente.

Um texto estará tão melhor estudado quando, na medida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delimitando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delimitação aclara a significação de sua globalidade.

Ao exercitar o ato de delimitar os núcleos centrais do texto que, em sua interação, constituem sua unidade, o leitor crítico irá surpreendendo todo um conjunto temático, nem sempre explicitado no índice da obra. A demarcação destes temas deve atender também ao referencial de interesse do sujeito leitor.

Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um trecho que lhe provoca uma série de reflexões em torno de uma temática que o preocupa e que não é necessariamente a de que trata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação entre o trecho lido e sua preocupação, é o caso, então, de fixar-se na análise do texto, buscando o nexo entre seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encontra trabalhando. Impõe-se-lhe uma exigência: analisar o conteúdo do trecho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim, trair o pensamento do autor em sua totalidade.

Constatada a relação entre o trecho em estudo e sua preocupação, deve-se separá-lo de seu conjunto, transcrevendo-o em uma ficha com um título que o identifique com o objeto específico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter-se, imediatamente, em reflexões a propósito das possibilidades que o trecho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando outros trechos que lhe possam aportar novas meditações.

Em última análise, o estudo sério de um livro como de um artigo de revista implica não somente numa penetração crítica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, numa permanente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.

b) Que o ato de estudar, no fundo é uma atitude frente ao mundo.

Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor-livro, ou leitor-texto.

Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua maneira deformada de enfrentá-la. Estudar é também e sobretudo pensar a prática e pensar a pratica é a melhor maneira de pensar certo. Desta forma, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os outros, com a realidade, para assumir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.

O exercício desta postura curiosa termina por torná-la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.

Assim é que se impõe o registro constante das observações realizadas durante uma certa prática; durante as simples conversações. O registro das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado”, não raras vezes, quando se caminha só por uma rua. Registros que passam a constituir o que Wright Mills chama de “fichas de idéias”.[2]

Estas idéias e estas observações, devidamente fichadas, passam a constituir desafios que devem ser respondidos por quem as registra.

Quase sempre, ao se transformarem na incidência da reflexão dos que as anotam, estas idéias os remetem a leituras de textos com que podem instrumentar-se para seguir em sua reflexão.

c) Que o estudo de um tema específico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.

d) Que o ato de estudar é assumir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja mediação se encontra nos temas de que ele trata. Esta relação dialógica implica na percepção do condicionamento histórico-sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.

e) Que o ato de estudar demanda humildade.

Se o que estuda assume realmente uma posição humilde, coerente com a atitude crítica, não se sente diminuído se encontra dificuldades, as vezes grandes, para penetrar na significação mais profunda do texto. Humilde e crítico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sempre o texto se dá facilmente ao leitor.

Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de melhor instrumentar-se para voltar ao texto em condições de entendê-lo. Não adianta passar a página de um livro se sua compreensão não foi alcançada. Impõe-se, pelo contrário, a insistência na busca de seu desvelamento. A compreensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige trabalho paciente de quem por ele se sente problematizado.

Não se mede o estudo pelo número de páginas lidas numa noite ou pela quantidade de livros lidos num semestre.

Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá-las e recriá-las.


* Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação bibliográfica que foi proposto aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária. Publicado na REA nº 33, fevereiro de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/033/33pc_freire.htm

[1] Sobre “educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.).

[2] Wright Mills – The Sociological Imagination.

PUBLICADO ORIGINALMENTE: Blog da Revista Espaço Acadêmico – http://espacoacademico.wordpress.com/2013/02/16/consideracoes-em-torno-do-ato-de-estudar/

 

TEMPOS MODERNOS (1936). Charlie Chaplin

Fonte: do You Tube

Modern Times, 1936 – Nesse filme não há meio termo, Chaplin realmente quis passar uma mensagem social. Cada cena é trabalhada para que a mensagem chegue verdadeiramente tal qual seja. E nada parece escapar: máquina tomando o lugar dos homens, as facilidades que levam a criminalidade, a escravização. O amor também surge, mas surge quase paternal: o de um vagabundo por uma menina de rua.

Um trabalhador de uma fábrica (Chaplin) tem um colapso nervoso por trabalhar de forma quase escrava. É levado para um hospital, e quando retorna para a “vida normal”, para o barulho da cidade, encontra a fábrica já fechada. Vai em busca de outro destino, mas acaba se envolvendo numa confusão: ao ver uma jovem (Paulette) roubar um pão para comer, decide se entregar em seu lugar. Não dá certo, pois uma grã-fina tinha visto o que houve e entrega tudo. A prisão para ele parece ser o melhor local para se viver: tranqüilo, seguro e entre amigos. Mesmo assim, os dois acabam escapando e vão tentar a vida de outra maneira. A amizade que surge entre os dois é bela, porém não os alimenta. Ele tem que arrumar um emprego rapidamente.

Consegue um emprego numa outra fábrica, mas logo os operários entram em greve e ele mete-se novamente em perigo. No meio da confusão, encontra uma bandeira vermelha, que julga ter caído de um caminhão e chama pelo dono, enquanto acena com ela. Um grupo de militantes surge atrás dele, e “junta-se” ao vagabundo. A polícia chega e o toma como líder. Vai preso ao jogar sem querer uma pedra na cabeça de um policial.

Paulette consegue trabalho como dançarina num Music Hall e emprega seu amigo como garçom. Também não dá certo, e os dois seguem, numa estrada, rumo a mais aventuras.

HISTÓRIA SECRETA DA OBSOLESCÊNCIA PLANEADA. Movimento Zeitgeist. The Zeitgeist Movement

THE ZEITGEIST MOVEMENT

http://www.zeitgeistportugal.org/

O Movimento Zeitgeist não é um movimento político, nem tão-pouco reconhece nações, governos, raças, religiões, credos ou classes. Estas distinções são incoerentes e obsoletas, estando longe de serem factores positivos para o verdadeiro desenvolvimento e potencial humano. As suas bases assentam na divisão de poder e na estratificação, não na igualdade e união, que são os nossos objectivos. Se é importante perceber que tudo na vida é o resultado de um progresso natural, devemos também reconhecer que a espécie humana tem a capacidade de reduzir drasticamente ou paralisar este progresso, através de estruturas sociais obsoletas, dogmáticas e, consequentemente, desalinhadas da própria natureza. O mundo a que assistimos hoje, repleto de guerra, corrupção, elitismo, poluição, pobreza, doenças epidémicas, abusos dos direitos humanos, desigualdade e crime é o resultado dessa mesma paralisia social.

O Movimento prossegue a consciência, advogando desta maneira uma evolução fluida e progressiva, tanto a nível pessoal, como social, tecnológico e espiritual. Ele reconhece que a espécie humana caminha naturalmente para a unificação, com base num entendimento comum e empírico de como a natureza funciona e, de como nós, humanos, fazemos parte integrante deste processo a que chamamos “vida”. Embora este caminho exista, ele encontra-se infelizmente obstruído e ignorado pela maioria populacional humana, que continua a perpetuar modos de conduta e instituições antiquadas e degenerativas. É esta irrelevância intelectual que o Movimento Zeitgeist espera ultrapassar graças à educação e à acção social.

O objectivo é rever a sociedade de hoje de acordo com os conhecimentos actuais, não só fomentando a consciência quanto às possibilidades tecnológicas e sociais existentes, para as quais muitos foram condicionados a pensar serem “impossíveis” ou contra a “natureza humana”, mas também providenciar um caminho para ultrapassar estes elementos perpetuados por um sistema de sociedade obsoleto.

O Movimento não é uma construção centralizada.

Não existimos para liderar, mas para organizar e educar.

O Que Advogamos

Resumidamente descrevendo o Movimento em 10 pontos, o mesmo:

1)  Reconhece que a nossa conduta actual no planeta é simplesmente insustentável e advoga a transição para um novo sistema apelidado de Economia Baseada em Recursos;
2) Reconhece que, através do uso humano da tecnologia, temos a possibilidade de providenciar muito mais recursos em abundância para todas as pessoas do planeta, criando assim um sistema de acesso em vez de um sistema de propriedade e dinheiro;
3) Reconhece que o nosso modelo actual de emprego encontra-se obsoleto e desalinhado com a realidade tecnológica de hoje, estando assim impotente face ao problema do desemprego tecnológico. Advogamos o uso de automatização na produção de bens e serviços, removendo onde for possível a necessidade de mão de obra humana, maximizando a eficiência e eliminando assim trabalhos monótonos e repetitivos, para permitir que o ser humano persiga aquilo que mais desejar;
4) Reconhece que a sociedade deverá possuir uma relação simbiótica com a natureza de maneira a se tornar sustentável e, deverá atingir e manter um equilíbrio ecológico vivendo em harmonia com o planeta e não contra ele;
5) Advoga uma mudança completa na forma como operamos este planeta, pois é um factor crucial se desejamos evitar o colapso social numa escala global;
6) O Movimento deseja remover e transcender as condições necessárias para a existência de governos e leis, focando-se em tratar as raízes dos nossos problemas sociais e ajustando o ambiente de maneira a que tais comportamentos aberrantes e necessidades não se materializem;
7) O Movimento advoga a utilização do método científico para questões sociais e ambientais, chegando às decisões baseando-se em dados estatísticos e lógica direccionada para a maximização de eficiência em operações técnicas, em vez de opiniões baseadas em interesse próprio ou nacional por parte de políticos ou empresários;
8) O Movimento é primariamente um movimento social, defendendo um sistema que encoraja a colaboração em vez de competição e, que tenha como base a união e igualdade.
9)  O Movimento não é uma instituição ou organização política e, como está estruturado em volta de projectos e objectivos, opera sem líderes ou hierarquia.
10)  O objectivo do Movimento é iniciar uma transição para uma Economia Baseada em Recursos, através da difusão de conteúdo, criando assim consciência social em massa sobre o conceito.

DA SERVIDÃO MODERNA. Jean-François Brient

“Toda verdade passa por três estágios.
No primeiro, ela é ridicularizada.
No segundo, é rejeitada com violência.
No terceiro, é aceita como evidente por si própria.”

Schopenhauer

O texto foi escrito na Jamaica em outubro de 2007 e o documentário foi finalizado na Colômbia em maio de 2009. Existe nas versões francesa, inglesa e espanhola. Elaborado a partir de imagens essencialmente oriundas de filmes de ficção e de documentários. (Fonte: You Tube, página de hospedagem do doc.)

A REVOLTA DA BURGUESIA ASSALARIADA. Slavoj Žižek.

Recriação do jogo Monopoly instalada por Banksy no acampamento do Occupy London

Traduzido por Chrysantho Sholl e Fernando Marcelino.

Embora os protestos sociais em curso nos países ocidentais desenvolvidos pareçam indicar o renascimento de um movimento emancipatório radical, uma análise mais detalhada nos compele a elaborar uma série de distinções precisas que, de alguma forma, embaçam essa clara imagem. Três coisas caracterizam o capitalismo de hoje: a tendência de longo prazo de transformação do lucro em renda (em suas duas principais formas: a renda do “conhecimento comum” privatizado e a renda pelos recursos naturais); o papel estrutural mais forte do desemprego (a própria chance de ser “explorado” em um emprego duradouro é percebida como um privilégio); e a ascensão de uma nova classe que Jean-Claude Milner chama de “burguesia assalariada” [Veja Jean-Claude Milner, Clartes de tout, Paris, Verdier, 2011].

Para explicar a relação entre estas características, comecemos com Bill Gates: como ele se tornou o homem mais rico do mundo? Sua riqueza não tem nada a ver com o custo de produção daquilo que a Microsoft vende (pode-se até mesmo argumentar que a Microsoft paga a seus trabalhadores intelectuais um salário relativamente alto), isto é, a riqueza de Gates não é o resultado de seu sucesso em produzir bons softwares por preços mais baixos do que seus concorrentes ou por uma “maior exploração” de seus trabalhadores intelectuais contratados. Se este fosse o caso, a Microsoft teria ido a falência há muito tempo: as pessoas teriam optado massivamente por programas como Linux que são de graça e, de acordo com especialistas, de melhor qualidade que os programas da Microsoft. Por que, então, existem milhões de pessoas que ainda compram Microsoft? Porque a Microsoft se impôs como um padrão quase universal, “quase” monopolizando o setor, uma espécie de personificação direta daquilo que Marx chamou de General Intellect (Intelecto Coletivo), o conhecimento coletivo em todas as suas dimensões, da ciência ao prático know how. Gates se tornou o homem mais rico em algumas décadas através da apropriação da renda pela permissão de que milhões participem na forma do “intelecto coletivo” que ele privatizou e controla.

Deve-se transformar criticamente o aparato conceitual de Marx: por causa de sua negligência em relação à dimensão social do “intelecto coletivo”, Marx não vislumbrou a possibilidade de privatização do próprio “intelecto coletivo”. É isto que está no coração da luta contemporânea pela propriedade intelectual: a exploração tem cada vez mais a forma de renda, ou, como diz Carlo Vercellone, o capitalismo pós-industrial é caracterizado pelo “tornar-se renda do lucro” [Veja Capitalismo cognitivo, editado por Carlo Vercellone, Roma, manifestolibri, 2006]. Em outras palavras, quando, por conta do papel crucial do “intelecto coletivo” (conhecimento e cooperação social) na criação de riqueza, as formas de riqueza se tornam cada vez mais desproporcionais em relação ao tempo de trabalho diretamente empregado na produção, o resultado não é, como Marx parecia esperar, a autodissolução do capitalismo, mas a transformação gradual do lucro gerado pela exploração da força de trabalho em renda apropriada pela privatização do “intelecto coletivo”.    

O mesmo acontece com os recursos naturais: sua exploração é uma das maiores fontes de renda hoje, acompanhada da luta permanente pra saber quem ficará com esta renda – os povos do Terceiro Mundo ou as corporações ocidentais (a suprema ironia é que, para explicar a diferença entre força de trabalho – que, em seu uso, produz mais-valia sobre seu próprio valor – e outras mercadorias – que somente consomem seu próprio valor em seu uso e, portanto, não envolvem exploração -, Marx menciona como exemplo de uma mercadoria ordinária o petróleo, a própria mercadoria que hoje é a fonte de extraordinários “lucros”…). Aqui também não faz sentido vincular as altas e baixas do preço do petróleo com altos e baixos custos de produção ou preços do trabalho explorado – custos de produção são negligenciáveis, o preço que pagamos pelo petróleo é a renda que pagamos para os proprietários deste recurso por conta de sua escassez e oferta limitada.

A consequência deste crescimento na produtividade alavancado pelo impacto exponencialmente crescente do conhecimento coletivo é a transformação do papel do desemprego: embora o “desemprego seja estruturalmente inseparável da dinâmica de acumulação e expansão que constitui a própria natureza do capitalismo enquanto tal” [Fredric Jameson, em Representing Capital, Londres, Verso Books, 2011, p. 149], o desemprego adquiriu atualmente um papel qualitativamente diferente. Naquilo que, possivelmente, é o ponto extremo da “unidade dos opostos” na esfera da economia, é o próprio sucesso do capitalismo (crescimento produtivo etc.) que produz desemprego (produz mais e mais trabalhadores inúteis) – o que deveria ser uma benção (menos trabalho duro necessário) se torna uma sina. O mercado global é, assim, em relação a sua dinâmica imanente, “um espaço no qual todos já foram, um dia, trabalhadores produtivos, e no qual o trabalho, em todos os lugares, foi aos poucos retirando-se do sistema” [Fredric Jameson, em Valences of the Dialetic, Londres, Verso Books, 2009, p. 580-1]. Isso é, no atual processo de globalização capitalista, a categoria dos desempregados adquire uma nova qualidade além da clássica noção de “exército industrial de reserva”: devemos considerar em relação a categoria do desemprego “aquelas enormes populações, que ao redor do mundo foram ‘expulsas da história’, que foram deliberadamente excluídas dos projetos modernizadores do capitalismo de primeiro mundo e apagadas como casos terminais sem esperança” [Jameson, em Representing Capital, p. 149]: os assim chamados estados falidos (Congo, Somália), vítimas da fome ou de desastres ecológicos, presos a “rancores étnicos” pseudo-arcaicos, objetos da filantropia e das ONGs, ou (frequentemente os mesmos personagens) da “guerra contra o terror”. A categoria dos desempregados deve assim ser expandida para agregar uma população de largo alcance, dos temporariamente desempregados, passando pelos não mais empregáveis, até pessoas vivendo nas favelas e outras formas de guetos (todos aqueles desconsiderados pelo próprio Marx como “lúmpem-proletariado”) e, finalmente, áreas inteiras, populações ou estados excluídos do processo capitalista global, como os espaços em branco nos mapas antigos.

Mas esta nova forma de capitalismo não traz também uma nova perspectiva de emancipação? Nisto reside a tese de Hardt e Negri em Multidão: guerra e democracia na Era do Império [Rio de Janeiro: Record, 2005] onde eles pretendem radicalizar Marx, para quem o capitalismo corporativo altamente organizado já era uma forma de “socialismo dentro do capitalismo” (uma espécie de socialização do capitalismo, com os proprietários tornando-se cada vez mais supérfluos), de maneira que seria necessário apenas cortar a cabeça do proprietário nominal e nós teríamos socialismo. Para Hardt e Negri, entretanto, a limitação de Marx foi estar historicamente limitado ao trabalho industrial mecanicamente industrializado e hierarquicamente organizado, razão pela qual a sua visão de “intelecto coletivo” seria como uma agência central de planejamento; somente hoje, com a elevação do trabalho imaterial ao padrão hegemônico, a transformação revolucionária se torna “objetivamente possível”. Esse trabalho imaterial se desdobra entre dois pólos: trabalho (simbólico) intelectual (produção de ideias, códigos, textos, programas, figuras etc. por escritores, programadores…) e trabalho afetivo (aqueles que lidam com afecções corpóreas, de médicos a babás e aeromoças). O trabalho imaterial é hoje hegemônico no sentido preciso em que Marx proclamou que, no capitalismo do século XIX, a produção industrial em larga escala era hegemônica, como a cor específica dando o tom da totalidade – não quantitativamente, mas cumprido um papel chave, emblematicamente estrutural. Assim, o que surge é um inédito vasto domínio dos “comuns”: conhecimento compartilhado, formas de cooperação e comunicação etc. que não podem mais ser contidos na forma da propriedade privada – por quê? Na produção imaterial, os produtos já não são objetos materiais, mas novas relações sociais (interpessoais) – em suma, a produção imaterial já é diretamente biopolítica, produção de vida social.

A ironia é que Hardt e Negri se referem aqui ao próprio processo que os ideólogos do capitalismo “pós-moderno” celebram como a passagem da produção material para a simbólica, da lógica centralista-hierárquica para a lógica da autopóiese e da auto-organização, cooperação multi-centralizada etc. Negri é aqui efetivamente fiel a Marx: o que ele tenta provar é que Marx estava certo, que a ascensão do intelecto coletivo é, em longo prazo, incompatível com o capitalismo. Os ideólogos do capitalismo pós-moderno estão afirmando exatamente o oposto: é a teoria marxista (e sua prática) que permanecem dentro dos limites de uma lógica hierárquica e sob controle centralizado do Estado, e assim não conseguem lidar com os efeitos sociais da nova revolução informacional. Existem boas razões empíricas para esta afirmação: de novo, a suprema ironia da história é que a desintegração do Comunismo é o exemplo mais convincente da validade da tradicional dialética marxista entre forças produtivas e relações de produção com a qual o marxismo contou na sua tentativa de superar o capitalismo. O que arruinou efetivamente os regimes Comunistas foi sua inabilidade em acomodar-se à nova lógica social sustentada pela “revolução informacional”: eles tentaram dirigir esta revolução com um novo projeto de planejamento estatal centralizado de larga escala. O paradoxo, assim, é que aquilo que Negri celebra como chance única de superação do capitalismo, é exatamente o que os ideólogos da “revolução informacional” celebram como ascensão de um novo capitalismo “sem fricção”.

A análise de Hardt e Negri possui três pontos fracos que, em sua combinação, explicam como o capitalismo pode sobreviver ao que deveria ser (em termos marxistas clássicos) uma nova organização da produção que o tornaria obsoleto. Ela subestima a extensão do sucesso do capitalismo contemporâneo (pelo menos em curto prazo) de privatizar o “conhecimento comum”, assim como a extensão com que, mais do que a burguesia, são os próprios trabalhadores que se tornam “supérfluos” (número cada vez maior deles torna-se não somente desempregado, mas estruturalmente inempregável). Além disso, mesmo que seja verdade, em princípio, que a burguesia está progressivamente se tornando desfuncional, deve-se qualificar esta afirmação –  desfuncional para quem? Para o próprio capitalismo. Isto quer dizer que, se o velho capitalismo envolvia idealmente um empreendedor que investia dinheiro (seu ou emprestado) em produção organizada e dirigida por ele próprio, recolhendo o lucro, hoje está surgindo um novo tipo ideal: não mais o empreendedor que possui sua própria empresa, mas o gerente especialista (ou um conselho administrativo presidido por um CEO) de uma empresa de propriedade dos bancos (também dirigidos por gerentes que não possuem os bancos) ou investidores dispersos. Neste novo tipo ideal de capitalismo sem burguesia, a velha burguesia desfuncional é refuncionalizada como gerentes assalariados – a nova burguesia recebe cotas, e mesmo se ela possui uma parte na empresa, eles recebem as ações como parte da remuneração pelo trabalho (“bônus por sua gerência bem sucedida”).

Esta nova burguesia ainda se apropria da mais-valia, mas da forma mistificada daquilo que Milner chama de “mais-salário”: em geral, a eles é pago mais do que o salário mínimo do proletário (este ponto de referência imaginário – frequentemente mítico – cujo único verdadeiro exemplo na economia global de hoje é o salário de um trabalhador numa sweat-shop na China ou na Indonésia), e é esta diferença em relação aos proletários comuns, esta distinção, que determina seu status. A burguesia no sentido clássico, assim, tende a desaparecer. Os capitalistas reaparecem como um subconjunto dos trabalhadores assalariados – gerentes qualificados para ganhar mais por sua competência (razão pela qual a “avaliação” pseudo-científica que legitima os especialistas a ganharem mais é crucial hoje em dia). A categoria dos trabalhadores que recebem mais-salário não está, obviamente, limitada aos gerentes: ela se estende a todos os tipos de especialistas, administradores, funcionários públicos, médicos, advogados, jornalistas, intelectuais, artistas… O excesso que eles recebem tem duas formas: mais dinheiro (para gerentes etc.), mas também menos trabalho, isto é, mais tempo livre (para alguns intelectuais, mas também para setores da administração estatal).

O procedimento de avaliação que qualifica alguns trabalhadores para receberem mais-salário é, claramente, um mecanismo arbitrário de poder e ideologia sem nenhuma ligação séria com a competência real – ou, como diz Milner, a necessidade de mais-salário não é econômica, mas política: para manter uma “classe média” com o propósito de estabilidade social. A arbitrariedade da hierarquia social não é um erro, mas todo o seu propósito, de forma que a arbitrariedade da avaliação cumpre um papel homólogo à arbitrariedade do sucesso de mercado. Isto é, a violência ameaça explodir não quando existe muita contingência no espaço social, mas quando se tenta eliminar esta contingência. É neste nível que se deve buscar pelo que se pode chamar de, em termos um tanto vagos, a função social da hierarquia. Jean-Pierre Dupuy [em La marque du sacre, Paris, Carnets Nord, 2008] concebe a hierarquia como um dos quatro procedimentos (“dispositivos simbólicos”) cuja função é fazer com que a relação de superioridade não seja humilhante para os subordinados: ahierarquia (a ordem externamente imposta de papéis sociais em clara contraposição ao valor imanente dos indivíduos – eu, portanto, experimento meu menor status social como totalmente independente do meu valor intrínseco); a desmistificação (o procedimento crítico-ideológico que demonstra que as relações de superioridade/inferioridade não estão fundamentadas na meritocracia, mas são resultado de lutas objetivamente ideológicas e sociais: meu status social depende de processos sociais objetivos, não de méritos – como diz Dupuy sarcasticamente, a desmistificação social “cumpre o mesmo papel, em nossas sociedades igualitárias, competitivas e meritocráticas do que a hierarquia nas sociedades tradicionais” [p. 208] – isto nos permite evitar a conclusão dolorosa de que “a superioridade do outro é o resultado de seus méritos e conquistas”; a contingência (o mesmo mecanismo, porém sem a sua forma crítico-social: nossa posição em escala social depende de uma loteria natural e social – sortudos são aqueles que nascem com melhores disposições e em famílias ricas); a complexidade (superioridade ou inferioridade dependem de um processo social complexo independente das intenções ou méritos dos indivíduos – digamos, a mão invisível do mercado pode causar o meu fracasso ou o sucesso do meu vizinho, mesmo que eu tenha trabalhado muito mais e seja muito mais inteligente). Ao contrário do que parece, todos estes mecanismos não contestam ou sequer ameaçam a hierarquia, mas a tornam palatável, uma vez que “o que desencadeia o turbilhão da inveja é a ideia de que o outro merece a sua sorte e não a ideia oposta, a única que pode ser abertamente expressa” [p.211]. Dupuy extrai desta premissa a conclusão (óbvia, para ele) de que é um grande erro pensar que uma sociedade que seja justa e que se perceba como justa será assim livre de todo o ressentimento – ao contrário, é precisamente em tal sociedade que aqueles que ocupam posições inferiores encontraram uma válvula de escape para seu orgulho ferido em violentas explosões de ressentimento.

Aí reside um dos maiores impasses da China hoje: o objetivo ideal das reformas de Deng Xiaoping era introduzir um capitalismo sem burguesia (como classe dominante); agora, entretanto, os líderes chineses estão descobrindo dolorosamente que o capitalismo sem hierarquia estável (conduzida pela burguesia como nova classe) gera permanente instabilidade – portanto, que caminho tomará a China? Mais genericamente, esta é possivelmente a razão pela qual (ex-)comunistas reaparecem como os mais eficientes gestores do capitalismo: sua histórica inimizade com a burguesia enquanto classe se encaixa perfeitamente na tendência do capitalismo contemporâneo em direção a um capitalismo gerencial sem burguesia – em ambos os casos, como Stalin disse a muito tempo, “os quadros decidem tudo” (está surgindo também uma diferença interessante entre a China de hoje e a Rússia: na Rússia os quadros universitários eram ridiculamente mal pagos, eles de fato se confundiam com os proletários, enquanto na China eles são bem remunerados com um “mais-salário” como meio de garantir sua docilidade).                       

Além disso, esta noção de “mais-salário” também nos permite lançar novas luzes sobre os atuais protestos “anti-capitalistas”. Em tempos de crise, o candidato óbvio para “apertar os cintos” são os níveis mais baixos da burguesia assalariada: uma vez que o seu mais-salário não cumpre nenhum papel econômico imanente, a única coisa que permite diferenciá-los do proletariado são seus protestos políticos. Embora estes protestos sejam nominalmente dirigidos pela lógica brutal do mercado, eles efetivamente protestam contra a gradual corrosão de sua posição econômica (politicamente) privilegiada. Lembremos da fantasia ideológica favorita de Ayn Rand (de seu Atlas Shrugged), a de “criativos” capitalistas em greve – esta fantasia não encontra sua realização perversa nas greves de hoje, que em sua maioria são greves da privilegiada “burguesia assalariada” motivada pelo medo de perder seu privilégio (o excedente sobre o salário mínimo)? Não são protestos proletários, mas protestos contra a ameaça de ser reduzido à condição proletária. Isto quer dizer: quem ousa se manifestar hoje, quando ter um emprego permanente já se tornou um privilégio? Não os trabalhadores mal pagos (no que sobrou) da indústria têxtil etc. mas o estrato de trabalhadores privilegiados com empregos garantidos (muitos da administração estatal, como a polícia e os fiscais da lei, professores, trabalhadores do transporte público etc.). Isto também vale para a nova onda de protestos estudantis: sua maior motivação é o medo de que a educação superior não mais lhes garanta um mais-salário na vida futura.

Está claro, obviamente, que o enorme renascimento dos protestos no último ano, da Primavera Árabe ao Leste Europeu, do Occupy Wall Street à China, da Espanha à Grécia, não devem definitivamente ser desconsiderados como uma revolta da burguesia assalariada – eles guardam potenciais muito mais radicais, de forma que devemos nos engajar numa análise concreta caso a caso. Os protestos estudantis contra a reforma universitária em curso no Reino Unido são claramente opostos às barricadas do Reino Unido em agosto de 2011, este carnaval consumista de destruição, a verdadeira explosão dos excluídos. Em relação aos levantes do Egito, pode-se argumentar que, no começo, houve um momento de revolta da burguesia assalariada (jovens bem educados protestando contra a falta de perspectiva), mas isto foi parte de um amplo protesto contra um regime opressivo. Entretanto, até que ponto o protesto conseguiu mobilizar trabalhadores e camponeses pobres? Não seria a vitória eleitoral dos islâmicos também uma indicação da base social estreita do protesto secular original? A Grécia é um caso especial: nas últimas décadas surgiu uma nova “burguesia assalariada” (especialmente na administração estatal superdimensionada) graças à ajuda financeira e empréstimos da União Europeia, e muitos dos protestos atuais, mais uma vez, reagem à ameaça de perda destes privilégios.

Além disso, esta proletarização da baixa “burguesia assalariada” vem acompanhada do excesso oposto: as remunerações irracionalmente altas dos grandes executivos e banqueiros (remunerações economicamente irracionais, uma vez que, como demonstraram as investigações nos Estados Unidos, elas tendem a ser inversamente proporcionais ao sucesso da empresa). É verdade, parte do preço pago por essa super remuneração é o fato dos executivos ficarem totalmente disponíveis 24 horas por dia, vivendo assim num estado de emergência permanente. Mais do que submeter estas tendências a uma crítica moralista, deveríamos interpretá-las como a indicação de como o próprio sistema capitalista não é mais capaz de encontrar um nível interno de estabilidade autorregulada e de como esta circulação ameaça sair do controle.

Publicado no Blog da Boitempo Editorial

http://boitempoeditorial.wordpress.com/2012/01/27/a-revolta-da-burguesia-assalariada/

OS PROLETÁRIOS NADA TÊM A PERDER NELA A NÃO SER SUAS CADEIAS…

“Os proletários nada têm a perder nela a não ser suas cadeias. Têm um mundo a ganhar. Proletários de todos os países, uni-vos!”
K. Marx & F. Engels
Manifesto do Partido Comunista, 1848