COMO INICIAR UMA REVOLUÇÃO (HOW TO START A REVOLUTION)

Como iniciar uma revolução - Gene SharpNo mundo inteiro as pessoas estão lutando contra a tirania. A obra de um homem ajudou a libertar milhões de pessoas. “Meu nome é Gene Sharp. E esse é o meu trabalho. Eu tento entender a natureza e o potencial de formas de luta não violenta para derrubar ditaduras.” Gene Sharp é considerado por analistas o maior especialista do mundo em revolução não-violenta. Escreveu um livro para derrubar ditaduras. Contém uma lista com 198 armas não violentas. “Não sabemos como o livro se espalhou mas aconteceu. Ele existe em mais de 30 línguas, em diferentes locais do mundo,  em todos os continentes exceto a Antártida.”

Áudio: inglês

Legendas: português br

IANNI, A POESIA NA SOCIOLOGIA

por José de Souza Martins*Ianni

 

Octavio Ianni falece no mesmo ano em que completaria meio século de vida intelectual intensamente dedicada à Sociologia: formou-se em Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da USP, em 1954. O meio século do que foi em sua vida, e na vida de todos nós que com ele convivemos, o meio século dos extremos: da euforia desenvolvimentista da era JK aos tempos tenebrosos da ditadura militar, de que ele foi uma das vítimas, aos tempos, enfim, de uma era de esperança e, ao que parece, por uma sua entrevista recente, de desilusões políticas.

Nesses extremos, um primeiro trabalho de Octavio sobre o samba de terreiro em Itu, sua amada terra caipira, foi o capítulo inicial de uma rica preocupação com o negro, a cultura popular, o mundo caipira, o homem simples, como ele o denominou num belo e definitivo ensaio. E também com a alegria que atravessa desde sempre nossos dilemas e nossas contradições para nos dizer que a vida é um pontilhado de opostos, único jeito de construir o novo e o mundo novo. Esse estudo é o prenúncio da obra de um homem permanentemente devotado à compreensão sociológica das diferenças sociais, das injustiças a elas associadas, das vacilações na busca de meios de superá-las. Mas nunca a obra do ingênuo do palavrório radical, tão em moda e tão inócuo, da crítica superficial e infundada.

Ao contrário, Ianni foi um pensador sereno e sensato. Ele foi um artesão do pensamento crítico no Brasil, autor de uma obra marcada de iluminuras que anunciam a estética de cada texto que escrevia para dizer-nos que o pensamento crítico não é uma farra do espírito e do denuncismo barato e incompetente. Para ele, o pensamento crítico é o pensamento responsável e fundamentado, acima das facções de toda ordem, expressão da neutralidade ética, mas não da indiferença social e política, produto da descoberta paciente, da indagação organizada, da investigação científica cuidadosa e não raro demorada. Lembro dele, meu professor no curso de graduação, explicando-me em sua apertada sala lá da rua Maria Antônia, que na sociologia a construção de uma interpretação dos dados de uma pesquisa é como a elaboração de uma sinfonia: a partir da descoberta do tema o sociólogo vai descobrindo desdobramentos, vai compondo sua obra, sua interpretação, as conexões de sentido, a explicação científica, o todo que se esconde atrás do factual, a universalidade contida no singular, no discreto e até no minúsculo.

036ianniIanni nunca se propôs a ser um pai da pátria, de dedo em riste discursando verdades incontestáveis, como se fosse dele o mandato de apontar rumos e denunciar descaminhos. Mas nem por isso deixou de expressar publicamente os resultados de suas observações, de expor-se à contestação se necessário, de animar a controvérsia e provocar a busca de clareza na construção de uma consciência social e política do contemporâneo. Ele nunca se afastou de uma referência clássica da sociologia, que foi uma das orientações centrais da chamada “escola sociológica de São Paulo”, uma expressão muito forte na obra de Florestan Fernandes: a sociologia é a autoconsciência científica da sociedade, a definição perfeita da missão social do sociólogo.

Não é estranho, pois, que no outro extremo de sua vida esteja uma entrevista de poucos dias antes de sua morte, publicada uma semana depois de seu falecimento, contendo dura e objetiva análise do momento político nacional e internacional, apontando não só incoerências do partido governante e do próprio governante, mas também desencontros entre a consciência política oficial e a realidade social e política deste momento histórico. Ironia oportuna da vida diante da óbvia tentativa de manipular a cena funerária por parte do partido dominante, em face do distanciamento que a própria vida acadêmica interpôs entre ele e seu colega e amigo de muitos anos, Fernando Henrique Cardoso. Manipulação injusta e descabida que já indica mais um empenho de envolvimento dos mortos nas conveniências dos vivos, como se fez com Florestan Fernandes e Milton Santos, fazendo-os autores do discurso que não fizeram e adeptos de opções que quem os conheceu sabe que provavelmente não fariam.

Entre esses pontos demarcatórios da cronologia de uma vida intelectual fecunda e exemplar, há os muitos episódios que para essa geração fizeram entrecruzar-se a biografia e a História. É nesse embate que o italianinho de Itu (designação depreciativa com que era tratado pelas famílias tradicionais, quando criança, que o magoava profundamente) supera a trama da subalternidade tecida para colher e enredar o imigrante nas funções inferiores da economia. Da adversidade dos que o destino previsível condenara a anularem-se no trabalho dependente, nasce o intelectual, o cientista competente, o autor de uma obra que é uma das mais lúcidas interpretações do Brasil, uma expressão poderosa de nossa consciência social e política.

036ianni2Mas não se politize tudo nem se transforme Ianni num reles ideólogo de partido, que ele não era e nunca se dispôs a ser. Em sua obra havia uma lindíssima tensão entre os temas duros e politizáveis da Sociologia – como a objetividade, as relações de classe, as relações raciais, o Estado, o planejamento, o globalismo – e os temas próprios do que se poderia definir como uma estética sociológica. Nos indevidamente chamados de pequenos trabalhos, há poderosas indicações de uma grande obra de autor sensível ao propriamente poético da realidade social, da fala do homem simples, das expressões estéticas da complicada e dramática sociedade contemporânea, como no seminal “O jovem radical”, em “A mentalidade do homem simples” ou em “A solidão do cidadão Kane”. Ianni permitiu e quis que o belo e o poético contidos na vida social emergissem em muitos momentos de sua obra, uma forma poderosa de crítica do homem comum ao que acabou sendo a indigência das teses sobre a chamada “exclusão social”, a louvação da pobreza como virtude, como se o homem pobre fosse ao mesmo tempo um idiota cultural, dependente dos mediadores que o calaram e capturaram sua palavra e seu direito de palavra.

Na obra de Ianni, o homem simples fala de vários modos. Não apenas a fala simples, mas também  o refinamento poético de que os simples sabem revestir as suas poucas palavras, forma de contestar na prática a retilínea opressão da racionalidade que nos domina. Não há como sonhar sem ser poeta. Mais do que ninguém na sociologia brasileira, Octavio compreendeu com sociologia e poesia o silêncio dos banidos da cena histórica, dos que foram roubados de muitos modos, não só pela burguesia e o grande capital.

Octavio encerrou o seu poema sinfônico poucos dias antes da morte com uma conferência magistral sobre a arte na ciência, na mesma Faculdade de Filosofia da USP em que estudou, em que ensinou e que o amou apesar das amarguras de um destino comum descabidamente dilacerado nos desencontros da História.

 


* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é Professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e fellow de Trinity Hall e professor titular da Cátedra Simon Bolívar da Universidade de Cambridge (1993-1994). Foi aluno de Octavio Ianni na USP (1961-1964) e seu colega na antiga Cadeira de Sociologia I, de Florestan Fernandes. Dentre outros livros, autor de Florestan – Sociologia e consciência social no Brasil, Edusp – Editora da Universidade de São Paulo/Fapesp, São Paulo, 1998. Fonte: Jornal da Unicamp, Edição 248, Campinas (SP), de 19 a 25 de abril de 2004. Publicado na REA, nº 36, maio de 2004, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/036/36cmartins.htm

 

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA REA – http://espacoacademico.wordpress.com/2013/02/23/ianni-a-poesia-na-sociologia/

MOVIMENTO ZEITGEIST EM PORTUGAL

MOVIMENTO ZEITGEIST EM PORTUGAL

“Toda a indústria da propaganda e a sociedade de consumo entrariam em colapso se as pessoas se tornassem iluminadas e deixassem de tentar encontrar as suas identidades através dos objectos.” 

– Eckhart Tolle

MUNDO TEM QUASE UM BILHÃO DE MISERÁVEIS

“Segundo o relatório, 8,7% dos habitantes da América Latina e do Caribe viviam com o equivalente a um dólar por dia em 2004, uma queda de apenas 0,9 ponto percentual em relação ao levantamento anterior, em 1999. Em 1990, o percentual era de 10,3%. O principal problema da América Latina é a desigualdade de renda, que ainda é a maior do mundo.”

Fontes: 
http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/0,,MUL62461-9356,00.html

http://www.cartacapital.com.br/carta-na-escola/um-bilhao-de-famintos/

Via Facebook de ‘Uma Outra Opinião’

PRODUTIVISMO ACADÊMICO – Sobre as dificuldades de escrever!

1171A Profa. Ana Maria Netto Machado, no texto publicado na obra A bússola do escrever: desafios na orientação de teses e dissertações, organizada por ela e o Prof. Lucídio Bianchetti, afirma:

“A observação prática nos mestrados demonstra, de uma maneira inquestionável, que 15 ou mais anos de língua português não desenvolveram, na grande maioria dos adultos, qualquer intimidade com a sua própria escrita, de modo que eles não conseguem escrever com facilidade, nem razoavelmente, nem corretamente, nem sem sofrimento. Isto é válido para autores ávidos, oradores eloqüentes e bem-sucedidos, cuja cultura não lhes garante a habilidade para escrever. É fácil constatar essas teses no meio acadêmico entre bons professores”.[1]

Ela conclui que, “salvo raras exceções, podemos insistir, sem equivoco, que 15 anos de língua portuguesa não habilitam para escrever”.[2]

Embora a obra referida tenha sido publicada há 10 anos, o diagnóstico é, no mínimo, preocupante. Será que o quadro geral mudou? Não tenho condições de aferição plena, pois não participo da pós-graduação, mas me parece que a percepção da professora permanece válida. A minha experiência em participação em bancas, enquanto leitor dos trabalhos acadêmicos na graduação e como editor e consultor dos artigos ditos científicos confirma-o. Não é meu intuito desvalorizar nenhum autor, graduando ou pós-graduando, mas apenas constatar um fato que corrobora as palavras da professora.

Espera-se dos pós-graduandos que concluam seus trabalhos e defendam suas teses e dissertações, especialmente se recebem bolsas. São recursos da sociedade e, portanto, há imperativo ético. A responsabilidade social do pós-graduando é imensa e não diz respeito apenas ao orientador, programa e instituição.

Nem sempre a defesa e o título conquistado têm relação estreita com o domínio da escrita e o escrever bem. Aliás, a experiência editorial, especialmente na Revista Urutágua, demonstra que não existe relação de causalidade entre titulação e capacidade de escrever. Já li textos de graduandos melhores escritos do que outros cujos autores são pós-graduandos, mestres e até mesmos doutores.

Se o pós-graduando enfrenta dificuldades para escrever sua dissertação ou tese, por que exigir que escreva artigos para periódicos? Ora, sejamos sensatos, nem todos temos inspiração ou competência inerentes ao bom escritor. Escrever é algo mais do que juntar palavras, organizar citações, apresentar tabelas e quadros que possam impressionar. A escrita por obrigatoriedade produz resultados desanimadores e, muito vezes, o auto-engano. A vaidade é também uma forma de ilusão! No mercado dos bens simbólicos, a publicação de um artigo não oferece certificado de boa escrita, mas apenas a constatação de que se cumpriu a demanda produtivista. Se o pós-graduando se vê pressionado a publicar, por que não antecipar a publicação da dissertação em forma de artigos? Como pode o mestrando/doutorando se dedicar ao seu trabalho final se tem que publicar agora? É preciso muita capacidade para se desdobrar…

Para muitos escrever é quase como uma tortura – não é por acaso que pós-graduandos entram em crise psíquica e, muitas vezes, comprometem a saúde física e as relações pessoais. Deveria ser suficiente esperar que concluam o trabalho de pós-graduação. Há as exceções, os que não têm problemas em produzir, ou seja, lidam com a escrita de forma tranqüila – e há também os competidores compulsivos, os quais se alimentam psiquicamente da pressão produtivista. Não obstante, para além das exigências formais e éticas, é mais sensato aceitar o fato de que nem todos gostamos de escrever, que não temos o mesmo domínio da escrita e aptidão. Não é melhor resguardar o direito de quem não quer publicar ou escrever de acordo com a capacidade e condições?

Por que e prá quê publicar? Por que obrigar o pós-graduando a isto? Não é suficiente que conclua a pós-graduação da melhor forma possível? Que ele publique, mas se for capaz e desejar. Da mesma forma, por que exigir do seu orientador a publicação de artigos? Também ele não tem o direito de ser “improdutivo”? As exigências produtivistas nos cegam diante de um simples fato: escrever não é fácil e nem está automaticamente vinculado à titulação. Publicar e escrever bem não são sinônimos. Escrever deveria ser um exercício prazeroso e não um tormento!


[1] MACHADO, Ana Maria Netto. A relação entre autoria e a orientação no processo de elaboração de teses e dissertações. In: BIANCHETTI, Lucídio e MACHADO, Ana Maria Netto (orgs.) (2002) A bússola do escrever: desafios na orientação de teses e dissertações. Florianópolis: Editora da UFSC; São Paulo: Cortez Editora, p.52

O NEGRO NA LITERATURA BRASILEIRA: a necessidade de um novo paradigma de crítica social e literária.

por ROSÂNGELA BOYD DE CARVALHO *

A história da África e seus habitantes, especialmente os que foram trazidos para o Brasil como escravos e seus descendentes, ou seja, todos nós, transformou-se, ainda que tardiamente, em componente curricular obrigatório. Talvez não a obrigatoriedade mas o privilégio de saber sobre o continente africano devesse nos impulsionar a descobrir mais sobre uma terra tão íntima e ao mesmo tempo estranha, próxima e distanciada.

Há mesmo quem chegue a pensar que a África é um país e não um continente. E normalmente esse país é pensado como um lugar onde habitam povos “primitivos” que vivem em tribos em meio à floresta cheia de animais selvagens. (ADINOLFI, 2005: p.1)

Estes e outros estereótipos encontram-se amplamente divulgados pelos meios de comunicação e pelo próprio sistema educacional, ainda representando extensões do pensamento europeu do final do século XIX, até então considerado científico, mas que veiculou informações menos científicas do que ideológicas sobre o continente africano, a fim de justificar o sistema de dominação colonial.

Forjou-se um conceito de raças humanas pressupondo uma hierarquia em cujo topo estava, evidentemente, o branco (caucasiano). Na base estariam os povos africanos e outros de pele escura, como os aborígenes australianos, vistos como “incapazes”, “preguiçosos”, “atrasados”, “selvagens” que só poderiam ser salvos pela ação da colonização européia. (Idem, Ibdem)

O outro lado da moeda que estampa o africano incapaz e atrasado revela o branco superior e desenvolvido. A teia de conceitos confunde ciência com ideologia, individualidades com estereótipos, verdades com vontades, onde se tece uma outra forma de cativeiro: a escravidão simbólica que irá castigar incansavelmente a auto-estima dos afrodescendentes.

O texto literário do século XIX, ansioso por configurar nossa identidade nacional, deixa escapar as contradições de uma sociedade que deseja acompanhar os modelos da modernização européia, beneficiando-se ainda da herança nefasta da escravidão. (SCHWARZ, 1990) A literatura oficial brasileira, acompanhando o modelo social hierarquizado, teria desprestigiado as atuações das etnias diferenciadas até o início do século XX, à exceção de Lima Barreto e Solano Lopes que, mesmo assim, só bem mais tarde receberam algum reconhecimento. A representação dos negros na literatura ficaria restrita a alguns estereótipos, entre os quais, aqueles do negro dócil, castigado, submisso, ou, por outro lado, bestial, instintivo, carnal. Assim, ocorreu um processo que substituiu a invisibilidade por uma visibilidade estereotipada, que felizmente existiu para que pudesse ser desmentida, tal como aparece em Solano Trindade ao revelar o homem negro como um ser humano em sua complexidade, sujeito de uma escritura:

Eu tenho orgulho de ser filho de escravo…
Tronco, senzala, chicote,
Gritos, choros, gemidos,
Oh! que ritmos suaves,
Oh! Como essas coisas soam bem
nos meus ouvidos…
Eu tenho orgulho em ser filho de escravo.

No entanto, a literatura encontra-se povoada por estereótipos de todas as cores: desde o Gaúcho de Alencar, que cavalgava pelos pampas sem subjetividade, à donzela pálida e assexuada, passando pelo índio homenageado por bom comportamento, o português rústico, o sertanejo jeca ou o nordestino retirante. Quanto à representação do negro, identificam-se dois grupos de autores: um deles representando os personagens negros a partir de estereótipos que apenas reproduziriam o modelo social hierarquizante; e um outro que busca subverter essa representação. Porém, talvez seja impróprio compará-los e, principalmente, cobrar dos primeiros o amadurecimento de uma consciência étnica e crítica que se construiu a partir de um processo histórico e estético que apenas o segundo grupo vivenciou.

Então, podemos indagar: Quando os negros participam da produção literária em forma de estereótipo, não seria possível encontrar do outro lado dessa moeda desvalorizada o branco também preso ao seu próprio estereótipo? Ah! Mas aí seria um estereótipo positivo, já que o europeu seria representado como o Senhor, como aquele que segura o cabo do chicote. No entanto, se compreendemos essa representação como “positiva”, não estaríamos compartilhando o mesmo ideário, a mesma concepção eurocêntrica que preparou tais dicotomias? Será que a concepção da negritude é uma capacidade epitelial?

Talvez esse sentimento dependa menos da origem do que da capacidade de duvidar de verdades construídas para proteger interesses, ou da vontade de verdade ocidental, que engendrou conceitos como raça, pureza, desenvolvimento etc. (NIETZSCHE, 1992) No entanto, reproduzir a ideologia dominante não caracterizaria necessariamente uma literatura não-negra, mas uma literatura não-crítica. Mas isso é igualmente uma classificação imprópria, principalmente se levarmos em consideração que os silêncios do texto também significam algo; que nós podemos detectar o que foi silenciado, como detectamos o silenciamento dos personagens negros, de seu aprisionamento em estereótipos, do mesmo modo que podemos observar o sacrifício e o sofrimento de Peri e Iracema, por mais que Alencar desejasse afirmar a harmonia do encontro entre o colonizador e o índio, ou tapar o sol com a peneira, como diz o ditado popular.

Uma outra personagem feminina, desta vez não uma índia mas uma mulata, teria recebido um tratamento inadequado pelo poeta Gregório de Matos. É em relação ao tratamento dispensado à mulher que o poeta estabelece uma nítida distinção entre as raças. Assim, ele retrata a mulher branca como um ser angelical – anjo no nome, angélica na cara – para deixar patente a sua inacessibilidade como ser superior, enquanto a visão que projeta da mulher negra corre em direção contrária, de modo que o rebaixamento no seu tratamento contrasta com a divinização emprestada à mulher branca. Daí, enquanto Maria é definida como santa, anjo ou deusa, à personagem Jelu não seria dispensado tratamento semelhante, restando-lhe os atributos que pertenceriam ao “sórdido”, “impuro” ou “bestial”:

Jelu, vós sois rainha das mulatas.
E, sobretudo, vós sois rainha das putas.
Tendes o mando sobre as dissolutas
Que moram nas quitandas dessas gatas.

Assim, em contraste com a visão de amor platônico retratada no soneto que Gregório dedica a Maria, Jelu é transfigurada, sem a menor cerimônia, em gata dissoluta. (NASCIMENTO, 2006:p.59) Portanto, o poeta seiscentista ainda não transgride uma concepção de mundo baseada em dicotomias e hierarquias. No entanto, observando isso, poderíamos nos perguntar se tal paradigma classificativo é facilmente superável.

Afinal, quando um determinado paradigma de escolha nos incomoda – carnal em vez de espiritual, pureza em vez de luxúria, bestial em vez de humano, puta em vez de santa –, isso significa que ainda estamos operando nos termos de seu modelo dicotômico e hierarquizante, ou seja, que não superamos ainda a velha cartilha do pensamento ocidental que classificou os africanos como inferiores, incapazes e feios, enquanto ressaltava a inteligência, a beleza e a superioridade do europeu.

No fundo, o que efetivamente nos incomoda é a possibilidade de sermos identificados como pertencentes aos “impuros” ou “inferiores”, mas não propriamente a existência do modelo cultural que opera com dicotomias. Ora, pensando ou sentindo nesses termos, embora não conscientemente, o trabalho de crítica não está livre de reproduzir a mesma concepção de mundo daqueles que, antes de escravizarem os africanos, escravizaram os paradigmas de verdade e autoproclamaram-se modelos de excelência cultural, social ou racial.

Referências

ADINOLFI, Maria Paula Fernandes. Africanidade: diversidade e unidade nas sociedades africanas. In Cartilha do Museu Afro-brasileiro. Salvador: CEAO/UFBA, 2005. p.1

NASCIMENTO, Giselda Melo. O negro como objeto e sujeito de uma escrita. Londrina: UEL, 2006.

NIETZSCHE, Friedrich. Além do bem e do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.

SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo. São Paulo: Duas cidades, 1990.


* ROSÂNGELA BOYD DE CARVALHO é Mestre em Literatura Brasileira pela UFF; Pós-Graduada em Cultura e Literatura Africana pela UCB; Profª. Titular de Literaturas na Faetec e Feuduc. Publicado na REA, n76, setembro de 2007, disponível em http://www.espacoacademico.com.br/076/76carvalho.htm

A ARTE EM SEUS DIVERSOS NÍVEIS. L’art à de nombreux niveaux

Violino, Mulher e Arte do Prazer

Saxofone que embala…

Pretinho básico

A rosa e seus espinhos

A rosa e a cerca

Borboletas também amam…

O chapéu e o seio

Uma camisola que se deixa entrever…

Simetria

FONTE: imagens oriundas do Facebook

ESCRAVIDÃO NO BRASIL

Trabalhador resgatado em fazenda no Pará, Foto: Leonardo Sakamoto/Repórter Brasil

RURALISTAS BARRAM PUNIÇÃO A ESCRAVOCRATAS. Marcelo Pellegrini – Carta Capital

No dia 13 de maio [de 2012], a Lei Áurea completa 124 anos sem resolver completamente o problema da escravidão no Brasil. Nesta semana, mais uma chance de por fim a esta questão foi postergada pela Câmara dos Deputados. Na quarta-feira 9, o presidente da Casa, Marco Maia, adiou a votação da PEC (Proposta de Emenda Constitucional) do Trabalho Escravo para o dia 22 deste mês. O principal motivo para o adiamento é o polêmico ponto da proposta a permitir  a expropriação de propriedade urbana ou rural em que seja constatado o trabalho escravo. Para os parlamentares ruralistas a bloquear a votação, o projeto não é claro ao definir o que é trabalho escravo e em quais situações as propriedades seriam expropriadas.

 

Com isso, a proposta segue emperrada e com baixas chances de ser aprovada. Um levantamento realizado pela CartaCapital revela que quase 40% dos parlamentares da Câmara – mais precisamente 205 deputados – fazem parte da Frente Parlamentar da Agropecuária. Além desses deputados, a frente ainda conta com o apoio de 14 senadores, entre eles o senador João Ribeiro (PR-TO), réu em um processo que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) de exploração de trabalhadores em condições análogas à escravidão.

 

Segundo dados do relatório da Comissão Pastoral da Terra, divulgado no início desta semana, 4395 trabalhadores foram denunciados em situação análoga à escravidão ou em condições de superexploração, em 2011, no País.

 

Grande parte destes trabalhadores foi encontrada pelos grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho realizando principalmente atividades de pecuária, carvoaria e lavoura. Os estados com o maior número de ocorrência foram: Pará, Tocantins, Goiás, Maranhão e Minas Gerais.


Os homens aliciados para servir de mão-de-obra escrava provém de áreas carentes e de baixo desenvolvimento do País

Estes estados, que fazem fronteira entre si, também fazem parte da rota de deslocamento da agropecuária do Sudeste em direção do Noroeste brasileiro – prática iniciada e incentivada na ditadura. “O trabalho escravo está vinculado com a expansão do agronegócio, que avança tecnologicamente nas práticas produtivas, mas sem o avanço social esperado”, diz o padre Antônio Canuto, secretário da Comissão Pastoral da Terra.

Segundo Eduardo Girardi, vice-coordenador do Núcleo de Estudos, Pesquisas e Projetos de Reforma Agrária (NERA) da Unesp, o trabalho escravo no campo é utilizado em atividades agropecuárias e em atividades que exigem um maior esforço físico, como desmatar áreas e o trabalho em carvoarias.

“Muitos trabalhadores são aliciados em regiões pobres do País com a perspectiva de trabalho para sair da miséria. Daí, vão para fazendas em regiões remotas e com vigias armados os obrigando a trabalhar em condições insalubres, com jornadas de mais de doze horas de trabalho por dia e sem a liberdade de ir e vir”, relata Girardi.

Multinacional

O avanço mais expressivo das ocorrências de trabalho escravo aconteceu no Mato Grosso do Sul. Em 2010, o estado teve duas ocorrências, com 22 trabalhadores denunciados em condições análogas à escravidão. Todos foram libertados. Já em 2011, foram quatro ocorrências e o número de trabalhadores denunciados saltou para 1293, dos quais 379 pessoas foram libertados.

Mapa das ocorrências do trabalho escravo no Brasil

Desses trabalhadores, 827 trabalhavam na propriedade da Fazenda Cruzeiro do Sul e da Infinity Agrícola S/A.

“Essa Infinity é uma multinacional, com sede no arquipélago das Bermudas, que comprou terras nos estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul para investir no setor açucareiro e do etanol”, conta o padre Canuto.

Atualmente, o Brasil possui a lista suja do trabalho escravo e os grupos móveis de fiscalização do Ministério do Trabalho, que age em conjunto com a Polícia Federal, como instrumentos de combate ao trabalho escravo. No entanto, as punições são brandas.

“Propriedades que fazem uso do trabalho escravo infringem a lei trabalhista e recebem uma multa por cada trabalhador em condições de superexploração ou escrava, além de pagar o salário, os direitos trabalhistas e a passagem de retorno de cada trabalhador para sua cidade de origem”, explica Girardi. “No final, é muito vantajoso, sob o aspecto financeiro, ter trabalho escravo”, completa.

Além disso, as empresas também podem responder no aspecto penal. Caso se confirme que os trabalhadores foram aliciados a pena vai de um a três anos de reclusão mais a multa. Nos casos de manutenção do trabalhador em condições análogas à escravidão a pena varia de dois a oito anos de prisão. No entanto, as empresas raramente são punidas. “Durante o processo pode-se alegar que havia manifestções de liberdade entre outros argumentos que pode as inocentar”, diz Paulo Sérgio João, professor de direito trabalhista da Fundação Getúlio Vargas.

Barraca onde trabalhadores estavam alojados. Foto: Leonardo Sakamoto/Repórter Brasil

Já segundo o professor da Faculdade de Direito da USP, Nelson Mannrich, existe um problema conceitual. “O Ministério do Trabalho deve definir de maneira clara o que é trabalho escravo e o que é condição degradante de trabalho para que as punições ocorram nos casos em que devem ser aplicadas”, diz Mannrich.

Desde 1985, a Comissão Pastoral da Terra registrou 1220 ocorrências de assassinato e 1616 vítimas provenientes de conflitos agrários – por motivos que vão desde a escravidão até a ocupação de terras. Até hoje, apenas 97 foram julgadas. “A impunidade nesses casos é histórica”, afirma o padre Canuto.

Com isso, a PEC, que voltará ao plenário no dia 22 [de maio], pode ser um instrumento para, de fato, inibir essa prática. “O fato da PEC prever a expropriação de propriedades é um grande avanço. Agora, caso a emenda seja aprovada sem essa medida será uma afirmação do caráter arcaico e explorador da legislação brasileira”, conclui.

Fonte: Carta Capital – http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ruralistas-barram-punicao-a-escravocratas/

A RAÇA DA UNIVERSIDADE PÚBLICA. José de Souza Martins

O julgamento da ação contra o regime de cotas raciais para ingresso na Universidade Nacional de Brasília é um julgamento histórico porque leva a justiça a decidir sobre os duradouros débitos de uma abolição mal feita da escravatura. A abolição não foi essencialmente motivada por intuitos humanitários nem pelo indiscutível reconhecimento da humanidade do negro em cativeiro. Nem o Estado nem os fazendeiros assumiram o ônus da escravidão que os beneficiara. Florestan Fernandes, em livro referencial da sociologia brasileira, já demonstrara os efeitos perversos dessa modalidade de abolição no estado de anomia e desorganização social, desamparo e pobreza, a que lançou o negro liberto. A abolição foi feita para libertar o senhor do fardo de seu escravo, cujo preço de mercado, com o fim do tráfico negreiro, tornou-o comparativamente oneroso e antieconômico em relação ao trabalho livre.

Em 1883, o abolicionista Joaquim Nabuco, que fora aluno da Faculdade de Direito de São Paulo, de uma rica família da província de Pernambuco, publicou O Abolicionismo, um clássico do ideário da luta contra a escravidão. Nele, faz esta afirmação fundamental: “a emancipação não significa tão somente o termo da injustiça de que o escravo é mártir, mas também a eliminação simultânea dos dois tipos contrários, e no fundo os mesmos: o escravo e o senhor.” No entanto, citada como de outro autor, essa premissa fundamental não presidiu o embate judicial de agora nem influenciou a decisão final do STF. Embora estivesse em jogo a emancipação do povo brasileiro dos fantasmas das servidões que o assombram.

A escravidão indígena foi formalmente abolida em 1755 com o Diretório dos Índios do Grão-Pará e Maranhão e a escravidão negra o foi, como sabemos, em 1888. Invocou a vice-procuradora geral da República o Diretório, em citação incorreta, para explicar o fenômeno da miscigenação e impugnar a definição minimalista de negro na presente disputa, mesmo que a maioria dos negros seja constituída de mestiços, nem por isso menos negros. Alegou que a miscigenação entre nós foi produto de uma engenharia social dos tempos coloniais, que determinava “aos homens brancos a união com mulheres negras como uma estratégia de povoamento e de criação de força de trabalho escravo…” Nada disso consta do Diretório que, para abolir a escravidão do índio e do pardo, suspendia as interdições estamentais que os alcançava e que degradava socialmente o branco que casasse com índia. É, social e juridicamente, outra a escravidão de que trata. Não a do debate no Supremo.

O lugar desse equívoco ficou evidente na intervenção da representante do Movimento Pardo-Mestiço Brasileiro, que questionou o dualismo branco-negro que informava o julgamento e informa a controvérsia sobre as cotas. O censo demográfico de 2012 contou no país 48,2% de brancos, 6,9% de pretos, 44,2 de pardos e 0,7% de amarelos e índios. Lembrou que juntar negros e pardos numa única categoria, como se fossem todos negros, usurpa direitos de identidade dos pardos e mestiços.

A questão é mais complicada do que a de direitos supostamente gerados pela cor da pele e nem foi isso que o Supremo decidiu. O país discrimina e na discriminação é injusto. A cor da pele é o estigma de marca, como assinala Oracy Nogueira, em que se apoia o preconceituoso para discriminar. Se recorrêssemos a um dos mais insignes conhecedores da nossa questão racial, o sociólogo Roger Bastide, saberíamos que a negritude não está na cor da pele. Está nas estruturas profundas e oníricas da consciência negra. Nesse sentido, um número provavelmente expressivo dos que se consideram negros, no critério do regime de cotas, negros não são, não obstante a cor da pele, pois descendentes dos que no cativeiro foram culturalmente privados da alma dessa negritude. Estão meramente crucificados no estigma.

A decisão do STF legitima uma tendência histórica do Brasil contemporâneo, que é a do deslocamento dos seus eixos de orientação política da referência clássica e meramente teórica do cidadão abstrato da doutrina, das classes sociais da teoria e dos partidos políticos das ideologias. Essa decisão põe no centro das demandas e tensões os grupos sociais discretos e restritos que através dos movimentos sociais e das ONGs falam e reivindicam hoje pelos carentes de todo tipo, os socialmente lesados e os vulneráveis.

A decisão afeta a Universidade. Os negros beneficiados pelo regime de cotas têm demonstrado, segundo várias fontes, competência que os iguala aos seus colegas do regime tradicional. É evidente que o problema não está num suposto filtro racial para ingresso na Universidade e sim no critério de recrutamento que deixa de fora milhares de competências e talentos potenciais de jovens que precisam apenas de uma oportunidade e de um desafio para mostrar do que são capazes. Afeta porque turba positivamente o privilégio dos que acham que, tendo ingressado na Universidade, já não têm o dever de provar continuamente que têm direito de ocupar a vaga que nela ocupam. Agora, o terão.


 

* JOSÉ DE SOUZA MARTINS é sociólogo e Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Dentre outros livros, autor de A Política do Brasil Lúmpen e Místico (Contexto, 2011);  Uma Arqueologia da Memória Social – Autobiografia de um moleque de fábrica, (Ateliê Editorial), 2011; A Sociedade Vista do Abismo, (Vozes, 2010); Exclusão Social e a Nova Desigualdade(Paulus,  2009). Publicado em O Estado de S. Paulo [Caderno Aliás, A Semana Revista], Domingo, 29 de abril de 2012, p. J7.

Fonte: Blog da Revista Espaço Acadêmico – http://espacoacademico.wordpress.com/2012/05/05/a-raca-da-universidade-publica/