CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE NA OCUPAÇÃO DO PINHEIRINHO (José Nêumanne) ||| JOSÉ NÊUMANNE E A VERDADE HISTÓRICA (Marco Aurélio Nogueira)

A tradicional página 2 do jornal paulistano O Estado de S. Paulo, Estadão, apresenta-nos pensamentos de todas as origens sobre diversos e, via de regra, polêmicos assuntos sobre a realidade que nos cerca. Com o episódio da ação policial militar do estado de São Paulo para desocupar o bairro (ou favela, como queiram alguns) do Pinheirinho, na cidade São José dos Campos, centenas e centenas de posições, artigos, ativistas, conservadores, radicais, pragmáticos, esquerdistas, centristas, direitistas e afins se posicionaram… Matérias jornalísticas foram feitas e ainda repercutem. De fato o episódio escancara as feridas de um Estado Nacional que ainda é coxo na oferta de caminhos sólidos de aquisição de direitos sociais plenos por uma massa de desvalidos e, portanto, de sua incompletude em muitas funções de sua responsabilidade. Sábado passado, 28 de janeiro, o Prof. de Teoria Política da UNESP de Araraquara, Marco Aurélio Nogueira, tomou partido e se lançou numa análise conjuntural da questão publicada na página 2 do Estadão (Crônica de uma guerra anunciada – http://marcoanogueira.blogspot.com/2012/01/cronica-de-uma-guerra-anunciada.html). E nesta quarta-feira, 1 de fevereiro, o jornalista José Nêumanne, na mesma página, “responde” ou escreve a partir dos argumentos e do caminho tomado pelo cientista político numa espécie de “resposta”. O tema é o mesmo: Pinheirinho. Mas as lógicas e os argumentos em muito se afastam. Ambos com elegância e ferramentas de convencimento expuseram suas opiniões com reflexão. No entanto, nessa mesma quarta-feira o professor Marco Aurélio Nogueira publica em seu blog Possibilidades da Política o contra-argumento a Nêumanne. Podemos ler e ver em um dos casos claramente a defesa que, no meu julgamento, uma boa parte da mídia nacional – conservadora – dissipa e procura fazer-nos crer que o episódio do Pinheirinho se reduz apenas a uma “questão do Estado Democrático de Direito, de modo a se fazer cumprir a ordem judicial. E pronto!” E esse lado, totalmente de viés liberal-burguês, é o de Nêumanne. Não obstante a opinião do jornalista, a análise de Marco Aurélio – de quem tive o prazer de ser aluno em alguns encontros, em 1998 e 1999, durante as aulas das disciplinas de Pensamento Político Brasileiro e Instituições Políticas Brasileiras, ambas sob responsabilidade do também cientista político e professor Milton Lahuerta, em Araraquara -, me parece mais sensível e carregada não somente de opinião, mas recheada de reflexão. Portanto vejo ali opinião aliada à reflexão, o que tanto falta à mídia. E na modéstia de minha opinião, tomo o mesmo caminho seguido pelo professor Marco Aurélio na observação do ocorrido em São José dos Campos. Talvez eu seja mais passional no meu “ativismo” de rede social e me enquadre naquilo que o professor Lahuerta, num comentário em sua página do Facebook, chamou de “aqueles que se alinhavam com a perspectiva de que o processo era uma clara manifestação de barbarismo contra o povo”. Decerto que não tenho a elegância, tampouco a perspicácia conceitual e analítica de M. A. Nogueira, bem como a experiência e o domínio da oratória “escrita” de Nêumanne. Todavia fiz a escolha de um dos “lados”, mesmo que essa talvez seja a principal causa das análises muitas vezes errôneas que pipocam os noticiários por justamente partidarizarem o Pinheirinho, como assinalou Nogueira. PUBLICO: para que possamos ler “os dois lados da questão” e tirarmos nossas próprias opiniões, peço um pouco de sua paciência, até porque os dois artigos são curtos e agradáveis de serem lidos, e coloco primeiramente o texto de José Nêumanne. Em seguida, segue o contra-argumento de Marco Aurélio Nogueira obedecendo a cronologia de suas publicações e, obviamente, a lógica do debate. POR ÚLTIMO, mesmo sem sua permissão, mas por considerar mais do que pertinente e por ter sido publicada numa página do Facebook com acesso aberto a centenas e centenas de leitores, coloco a opinião do professor Milton Lahuerta extremamente sóbria, porém intensa sobre o debate a que nos brindaram o acadêmico e o jornalista. Professor Lahuerta há de me perdoar…

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CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE NA OCUPAÇÃO DO PINHEIRINHO (José Nêumanne)

Publicado originalmente: http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,civilizacao-e-barbarie-na-ocupacao-do-pinheirinho-,829884,0.htm

Josef Stalin morreu, já não se fala em “centralismo democrático” como antigamente, mas a prática da obediência à palavra de ordem emanada do Comitê Central permanece viva, uma chama acesa a incendiar não mais os corações e mentes dos seres humanos, mas a velha e boa ordem da democracia burguesa. Antigamente o militante recebia o nome do candidato que tinha de sufragar na eleição por baixo da porta, por cuja fresta também chegava a palavra de ordem da ocasião. E a palavra de ordem do momento é “pau neles!” Vale a metáfora e também vale o sentido literal: em artigos em jornais e até no púlpito presidencial, a reintegração de posse do terreno pertencente à massa falida do “megaespeculador” Naji Nahas invadido há oito anos e, desde então, progressiva e definitivamente ocupado por sem-teto é um ato brutal contra um punhado de desvalidos da terra. O discurso é duro, a causa é nobre. Mas a palavra é débil: estamos num ano eleitoral e é preciso partir para o desforço físico, que machuca o adversário e introduz o protesto no noticiário do dia. 

“A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho”, escreveu nesta página o professor titular de Teoria Política e diretor do Instituto de Políticas Públicas e Relações Internacionais da Unesp, Marco Aurélio Nogueira. Seu artigo publicado sábado 28 de janeiro está carregado de correção política e legitimidade acadêmica. Falta-lhe, contudo, verdade histórica. O professor se condói da situação dos 6 mil desabrigados pela força policial. Qualquer um o faria. É uma terrível injustiça esses trabalhadores não terem onde morar e o Estado brasileiro, representado pelos governos federal, estaduais e municipais, não dispor de nada que se possa chamar de uma política capaz de reduzir nosso vergonhoso déficit habitacional. O mestre relatou que “município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali se estava gestando”. Apoiado! A omissão da autoridade, contudo, não pode ser corrigida com outra: vige no Brasil o Estado Democrático de Direito, o império da lei. Pratica-se a propriedade privada e a democracia se realiza na obediência à lei interpretada pelo juiz: a Justiça mandou entregar o terreno de volta aos donos. Cabia ao governador mandar cumprir a ordem judicial. Só isso.

A polícia exorbitou? Ninguém percebeu a fotografia publicada nos jornais de uma tropa armada de paus e pedras para defender direitos inexistentes sobre solo alheio? Ninguém, de sã consciência, esperava que tropas policiais enfrentassem esses resistentes levando flores no cano de fuzis, em vez de baionetas. Um crítico isento aplaude o fato de a Polícia Militar (PM) paulista ter conseguido desarmar aquela resistência sem derramar sangue de ninguém e, sobretudo, sem produzir um cadáver. Em ano eleitoral, sangue e cadáveres costumam interferir em resultados de urnas. A invasão sangrenta da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) às vésperas dos pleitos municipais de 1988 ajudou a eleger Luiza Erundina (PT) prefeita de São Paulo, a 400 quilômetros de Volta Redonda (RJ).

Em Porto Alegre (RS) a presidente da República, Dilma Rousseff, manifestou-se uma oitava acima da crítica do professor sobre o assunto. Classificou de “barbárie” a ação policial e garantiu que nunca algo similar será praticado pelo governo federal sob suas ordens. O compromisso é uma tautologia enganadora, mais do que isso, uma verdade óbvia e insidiosa, pois essa não é uma tarefa atribuída pela ordem constitucional ao âmbito federal, mas uma obrigação estadual. A autoridade encarregada de empregar a força para fazer valerem decisões judiciais é da Polícia Militar, subordinada a governadores. Ou seja, Sua Excelência, com a devida vênia, prometeu o que cumprirá porque não lhe diz respeito algum.

Já a definição presidencial da operação ordenada pelo adversário político é simplesmente errada. Bárbara não foi a ação policial que desocupou o terreno, mas a situação social e a omissão governamental (muito bem descrita pelo professor Nogueira) que permitiram sua ocupação sem autorização do legítimo dono. Pode-se discutir se a PM paulista usou mais ou menos violência do que o necessário para fazer a ordem judicial ser cumprida. Mas negar à Justiça, na democracia, o uso do braço forte para obrigar quem viola a lei a se enquadrar em seus cânones é desconhecer o princípio básico da ordem democrática. Se não for um excesso de irreverência, talvez seja o caso de dizer que falou mais alto no coração da chefe (ou ela preferiria chefa?) de Estado seu passado de militante do que seu juramento de fazer cumprir a Constituição.

Agora, já que a presidente falou em barbárie, ou seja, no estágio anterior ao convívio civilizado dos humanos, convém alertá-la de que bárbaros são os militantes que tentaram impedir a saída do prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab (PSD), da Sé, na festa do aniversário da cidade, e do secretário estadual da Cultura, Andrea Matarazzo, da nova sede do Museu de Arte Contemporânea (MAC), a pretexto de protestarem contra a desocupação da comunidade. Kassab administra um município a 100 quilômetros de distância do território conflagrado. Foi agredido gratuitamente, portanto, à saída da catedral, e numa praça onde se realizaram grandes encontros cívicos pela conquista da liberdade de pensar, agir e empreender. Matarazzo é titular de uma pasta responsável por teatros, museus, oficinas e salas de espetáculos e tem tanto que ver com o episódio de São José dos Campos quanto o bei de Túnis ou o califa de Bagdá. O desforço físico é a tentativa, essa, sim, bárbara de compensar a influência que a população nega nas urnas aos grupelhos de esquerda que plantam barracos em áreas proibidas para colherem sangue e cadáveres em ano de eleições.

O saber do mestre e a imensa popularidade da presidente não conseguirão atenuar a barbárie de quem, não tendo votos, recorre a paus, pedras e ovos para tentar impor seus argumentos.

*Jornalista e escritor, é editorialista do Jornal da Tarde

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JOSÉ NÊUMANNE E A VERDADE HISTÓRICA (Marco Aurélio Nogueira)

Publicado originalmente: http://marcoanogueira.blogspot.com/2012/02/jose-neumanne-e-verdade-historica.html

Charge de Frank

O jornalista José Nêumanne publicou hoje no Estadão um artigo repercutindo os fatos do Pinheirinho. (Veja aqui.)É uma análise do que ele considera ter sido o essencial do evento e daquilo que mais se destacou em tudo o que se disse a respeito: “a obediência à palavra de ordem emanada do Comitê Central”, que ainda permanece viva, “uma chama acesa a incendiar não mais os corações e mentes dos seres humanos, mas a velha e boa ordem da democracia burguesa”. Hoje, na avaliação dele, a palavra de ordem é “pau neles!”.


O problema é que o Nêumanne me põe nesse barco, pois seu artigo é uma réplica ao meu, publicado sábado passado no mesmo espaço. Ele começa elegante, afirmando que meu artigo “está carregado de correção política e legitimidade acadêmica”. Faltar-lhe-ia, contudo, “verdade histórica”. 

Segundo ele, eu me condoo da situação dos desabrigados, o que todos fizeram. Também critico a falta de política habitacional e a omissão dos governos, o que ele apoia e aplaude. 

Onde estaria então o meu erro? É que eu não teria dado o devido valor ao Estado Democrático de Direito, no qual vigora o império da lei e a Justiça é soberana: “cabia ao governador mandar cumprir a ordem judicial. Só isso”.  Reclamei dos excessos da PM e isso também desgostou o Nêumanne: “Ninguém percebeu a fotografia publicada nos jornais de uma tropa armada de paus e pedras para defender direitos inexistentes sobre solo alheio? Ninguém, de sã consciência, esperava que tropas policiais enfrentassem esses resistentes levando flores no cano de fuzis, em vez de baionetas”. O importante era desarmar os invasores, impedindo um banho de sangue, e expulsar de lá os invasores, que estavam flagrantemente contra a lei.

Por não ter visto nada disso, eu teria praticado o mesmo tipo de denúncia feita pela presidente Dilma e por outros dirigentes do PT: “O saber do mestre e a imensa popularidade da presidente não conseguirão atenuar a barbárie de quem, não tendo votos, recorre a paus, pedras e ovos para tentar impor seus argumentos”.

Não pretendo ficar discutindo com o Nêumanne, um jornalista experiente, a quem aprecio e que é meu colega ali na pág. 2 do Estadão. Li seu artigo como uma peça ideológica em defesa do liberalismo. Também acho que a ele falta verdade histórica e sobretudo sensibilidade social. Não é porque se defende o Estado Democrático de Direito (coisa que faço com a maior veemência) que se precisa defender dogmaticamente uma ação policial explosiva. Uma decisão judicial pode ser aplicada de diferentes maneiras, sugeri em meu texto. O modo como foi aplicada no caso do Pinheirinho foi péssima, independentemente do que digam os políticos e os analistas. Os efeitos nefastos da operação estão expostos à luz do dia.
Houve excesso policial e certamente estão havendo excessos entre aqueles que criticaram e que apoiaram a desocupação do terreno. Nada a escandalizar ou a surpreender. Vivemos uma época de excesso, já não houve quem disse isso?

Tudo hoje no Brasil vira bate-boca partidário. Verdades e mentiras converteram-se em frases ocas, que não conseguem ser comprovadas nem discutidas adequadamente. Tudo é ideologia. Até o Senador Aloysio Nunes Ferreira, meu senador e meu amigo, a quem respeito como poucos na política, acabou por se deixar levar pela necessidade de marcar posição na guerra partidária em que se converteu o Pinheirinho. Escreveu na Folha de S. Paulo de hoje (veja aqui) um artigo para denunciar o que considera “uma fábrica de mentiras montada pelo PT para divulgar nas próximas campanhas eleitorais”. Ele pode ter razão em alguns dos fatos, mas só fez o que fez para defender o governo estadual, não para esclarecer o que de fato aconteceu.  Enquanto o PSDB “constrói casas”, escreveu, o PT “flerta com grupelhos que apostam em invasões e que torcem para que a violência leve os miseráveis da terra ao paraíso”.

É um discurso afiado eleitoralmente, mas que ajuda muito pouco seja ao estabelecimento da verdade, seja ao entendimento entre as forças políticas, que é, de resto, aquilo de que o Brasil mais precisa.

Igualzinho ao do Nêumanne, aliás.

A gente, na verdade, devia é estar trabalhando para despartidarizar o Pinheirinho e encontrar um rumo democrático para as reformas sociais de que tanto precisamos.

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OPINIÃO DO PROF. MILTON LAHUERTA SOBRE O DEBATE

Publicado originalmente: página pessoal do Facebook

Marco Aurélio Nogueira, além de meu amigo e irmão, prima pela coragem e pela clareza com que apresenta suas posições. Por valorizar as redes sociais, tem procurado manter uma presença constante nelas, beneficiando-se de sua vasta cultura, de sua experiência política e do longo aprendizado como intelectual público que interfere nas questões do nosso tempo. Com generosidade e isenção procura tratar dos problemas sem se render a partidarismos e paixões imediatas, enfatizando o papel civilizatório do debate e a necessidade de se cultuar a linguagem da moderação e do bom senso. Por agir assim muitas vezes é mal compreendido e atacado, ora pela esquerda ora pela direita, que lhe cobram falta de empenho na defesa de seus respectivos campos. 

No tratamento do caso do Pinheirinho não foi diferente! Os textos que escreveu foram considerados pedantes, insensíveis aos pobres e pró-tucanos por aqueles que se alinhavam com a perspectiva de que o processo era uma clara manifestação de barbarismo contra o povo; já pelos liberais-conservadores foram vistos como uma espécie de manifestação acadêmica do governismo petista, conforme mostra o artigo publicado hoje no Estadão por José Nêumanne.

Penso que Marco Aurélio não merece nenhum dos ataques que, com mais ou menos virulência, foram desferidos contra ele. E acredito que o texto de sua lavra, publicado hoje em seu blog, voltando ao episódio e comentando os textos de José Nêumanne e do Senador Aloysio Nunes Ferreira, não só responde às críticas recebidas, como nos faz um convite à lucidez, além de ajudar a organizar a discussão sobre o assunto. 

Com a palavra, Marco Aurélio Nogueira…

CRÔNICA DE UMA GUERRA ANUNCIADA. Marco Aurélio Nogueira

O que era para ser festa pelos 458 anos de São Paulo virou vergonha, preocupação e convite à reflexão.

 

O estopim foi aceso no domingo, 22, ao raiar da madrugada, quando a Polícia Militar paulista removeu à força os moradores de um terreno vazio do município de São José dos Campos, o Pinheirinho, pertencente à massa falida do investidor Naji Nahas. Cerca de 6 mil pessoas viviam na área de 1,3 milhão de metros quadrados.

 

A operação tinha o respaldo de uma decisão judicial estadual, contestada por setores da Justiça Federal.

 

Decisão judicial emanada, a PM foi a campo. O ambiente era de conflito, pois os ocupantes organizaram-se para resistir. E o que era para ser mero ato jurídico converteu-se numa batalha campal. Os militares expulsaram as pessoas de seus barracos, que foram sucessivamente destruídos por tratores. O confronto foi inevitável. Carros queimados, feridos, dezenas de presos, choques e pancadaria, cenas que se repetiriam nos dias seguintes. Tudo em doses desproporcionais ao que se tinha de fato no Pinheirinho: 1.500 famílias convencidas de que seria possível ter ali um canto para viver. Não havia exércitos inimigos nem “classes perigosas”, mas uma guerra terminou por eclodir.

 

A ocupação do Pinheirinho ocorreu em 2004. O acampamento proliferou. Converteu o terreno num bairro, com comércio e igrejas. Deu perspectivas de vida e moradia a milhares de pessoas. Ao longo do tempo, suas lideranças procuraram negociar a desapropriação pública do terreno e a atenção dos poderes municipais. Talvez não tenham tido a habilidade necessária, talvez não tenha sabido buscar os apoios e os meios necessários, certamente encontraram resistência, protelação e má vontade. Nos últimos tempos, era clara a vontade de se ter uma saída negociada. A solução, porém, foi sendo postergada pelo poder municipal, desprovido de inteligência e de política urbana. Município, Estado e União assistiram ao crescimento do bairro e nada fizeram para gerenciar o que ali estava se gestando. Tiveram 8 anos para isso. Aí, de repente, na calada da noite, decide-se remover à força os ocupantes. Insensatez.

 

É fácil criticar a PM, mas a ação foi estatal, autorizada. Teria agido a PM à revelia do governador ou a principal autoridade paulista não teve como escapar do fato de que “decisão da Justiça não se discute, cumpre-se”? Tão correta quanto esta máxima, é a consideração do modo como uma decisão deve ser cumprida, a avaliação de suas consequências. Não era evidente que a remoção levaria a choques e confrontos? Que milhares de pessoas seriam prejudicadas? Sabia-se disso tudo porque tudo era de conhecimento público. Processos de desocupação à força ferem direitos, produzem vítimas e criam muito mais problemas que soluções.

 

Apesar disso, não houve uma voz que ponderasse e suspendesse a operação. Que freasse o massacre que se anunciava. A falta de flexibilidade horroriza porque, no dia anterior, o Tribunal Regional Federal interrompera a reintegração de posse e também porque, uma semana atrás, estava bem avançado um acordo entre as partes envolvidas. Faltou política com P maiúsculo. Não apareceu ninguém – partidos políticos, lideranças democráticas, poderes públicos – para facilitar o encontro de uma solução negociada. Somente as lideranças do Pinheirinho mobilizaram-se, com a ajuda efêmera de alguns ativistas. Deu no que deu.

 

A repercussão foi imediata. As redes ferveram. A mídia repercutiu os acontecimentos. A OAB classificou como ilegal a reintegração de posse, realizada apesar de ordem da Justiça Federal mandando suspender a ação. Exacerbou-se o conflito de competências federativas. O governador de São Paulo prometeu verificar se houve abusos na operação. Da sociedade civil e de Brasília choveram críticas a ele e ao PSDB. Houve manifestações. A questão se politizou. O que era para ser ato pontual converteu-se em tema nacional, eleitoral, alimentado por uma tragédia social.

 

Por trás dele, um mar de dúvidas e perplexidades. Por que beneficiar proprietários em detrimento de moradores pobres? Não seria por um desejo não revelado de especulação imobiliária, por acertos espúrios entre alguns “anéis burocráticos”? Por que nada se fez pelo Pinheirinho no correr dos últimos anos, tempo em que os gestores públicos assistiram impassíveis à consolidação do bairro? Uma nódoa manchou os governos estadual e municipal, e o PSDB por implicação. Será difícil apagá-la. Ela respingou no sistema político como um todo, chegou a Brasília, ao Ministério das Cidades e não só a ele. Sempre é fácil apelar para o pacto federativo quando se trata de justificar a ausência de políticas e o abandono dos mais fracos. Também é fácil falar em soluções ex-post facto.

 

A falta de ação política positiva, capaz de gerar consensos e soluções, ficou evidente no Pinheirinho. Mas está em toda parte. Os ambientes atuais estão congestionados de posições referenciadas por princípios que não se compõem com facilidade: o desejo de justiça, igualdade e liberdade versus a exigência de controle. É uma polarização que só tem feito se agravar. Aparece no modo como se pensa e se pratica a política hoje, na tensão despropositada entre representação e participação. Mostra-se na face autoritária e no particularismo dos governos, sempre prontos a defender os mais fortes.

 

Será preciso esforço, ideias e tempo para que amadureçam soluções democráticas consistentes para os problemas que estão a emergir da revolução atual, que está revirando os fundamentos do viver coletivo, e desta crise orgânica que está fazendo com que o capitalismo aprofunde suas imperfeições, desorganize os sistemas de produção e distribuição, as formas de vida, as identidades e os modelos políticos, complicando e problematizando as capacidades coletivas de reação e emancipação. [Publicado em O Estado de S. Paulo, 28/01/2012, p. A2].

FONTE: Possibilidades da Política – Blog do Marco A. Nogueira

http://marcoanogueira.blogspot.com/